O Perfume da fé e a Pedagogia dos Sentidos
O tema do olfato na liturgia é um dos mais ricos para compreender como a Igreja Católica integra o corpo e a alma na experiência do culto.
“Verifiquei com frequência que os odores atuam sobre mim, segundo sua natureza, e impressionam meu espírito de diversas maneiras, o que me induz a considerar exato o que dizem a respeito do incenso e dos perfumes usados nas igrejas, a saber, que esse costume tão antigo, e tão difundido nas diferentes religiões, tem por objetivo deliciar, acordar e purificar os nossos sentidos, a fim de melhor nos predispor à contemplação.” Ensaios de Montaigne
A reflexão de Montaigne que destaco é notável justamente por reconhecer que o ser humano não é uma mente separada do corpo, mas um ser unitário — e que os sentidos têm papel ativo na abertura à transcendência.
Vamos desenvolver o tema em três partes: a) a intuição filosófica de Montaigne; b) a teologia e espiritualidade litúrgica católica; e c) a síntese simbólico-sacramental do olfato como via da contemplação.
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🕊️ Montaigne e a antropologia dos sentidos
Em seus Ensaios, Montaigne observa que os odores possuem a capacidade de tocar diretamente o espírito — isto é, não apenas o corpo ou a imaginação, mas a própria disposição interior do ser humano. Ele nota que o incenso e os perfumes nas religiões antigas não são meros adornos sensoriais: eles educam e despertam a alma.
“Os odores atuam sobre mim segundo sua natureza e impressionam meu espírito de diversas maneiras.” (Ensaios, II, 12)
Com isso, Montaigne toca um ponto que a teologia cristã sempre defendeu: o ser humano é sensorial e espiritual ao mesmo tempo, e tudo o que é material pode se tornar mediação de uma realidade divina — esse é o fundamento do sacramentalismo católico.
Assim, o olfato — sentido sutil, misterioso e profundamente evocativo — pode predispor o homem ao sagrado, purificando as distrações e abrindo o coração à contemplação. É o que ele chama de “deliciar, acordar e purificar os sentidos”.
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✝️ A teologia litúrgica do olfato na tradição católica
A liturgia da Igreja Católica sempre reconheceu o valor do incenso como símbolo e instrumento de oração e santificação.
a) Raízes bíblicas
O uso do incenso vem do Antigo Testamento:
• Êxodo 30,7-8: Deus ordena a Moisés que o sacerdote Aarão queime incenso cada manhã e cada tarde diante do Senhor.
• Salmo 141,2: “Suba a minha oração como incenso à tua presença.”
• Apocalipse 8,3-4: o anjo apresenta o incenso com as orações dos santos diante do trono de Deus.
O perfume do incenso simboliza a oração que se eleva ao céu, a alma que busca a comunhão divina.
Cristo como aroma agradável
São Paulo usa a linguagem do olfato espiritual:
“Somos o bom perfume de Cristo” (2Cor 2,15).
Os Padres da Igreja interpretaram essa imagem como a presença invisível da graça, que se difunde e transforma o ambiente espiritual — assim como o aroma enche o espaço.
Santo Ambrósio e São Gregório Magno viam o incenso como símbolo da alma purificada, cujo amor sobe a Deus em oração.
Função litúrgica
Na Missa, o incenso é usado:
• Para honrar a presença de Cristo (no altar, no Evangelho, na Eucaristia);
• Para santificar o povo e o ambiente, representando a oração comum que sobe ao céu;
• Para recordar o mistério da presença de Deus, invisível, porém real.
O perfume cria uma atmosfera de transcendência. A liturgia, que é corpo e espírito, palavra e gesto, som e silêncio, faz do olfato um canal de participação sacramental.
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🌹 O olfato como via da contemplação
A tradição mística cristã — de Orígenes a São Bernardo de Claraval e Santa Teresa d’Ávila — fala frequentemente de “odor espiritual” como metáfora da presença de Deus.
• O Cântico dos Cânticos é central:
“O teu nome é como perfume derramado” (Ct 1,3).
Para os Padres, esse perfume é Cristo, cujo Espírito Santo difunde seu “aroma de vida”.
• São Bernardo, em seus sermões sobre o Cântico, descreve o “odor do nome de Jesus” como aquilo que atrai a alma à oração e cura as feridas do coração.
Assim, o olfato espiritual representa a experiência da graça que se percebe, mas não se vê — a presença de Deus que envolve, penetra e transforma silenciosamente.
• Santo Tomás de Aquino (em Suma Teológica, III, q.83, a.5) explica que o uso do incenso na liturgia é de grande conveniência, pois “exprime o fervor da oração, que sobe a Deus como aroma suave”, e “serve para significar a purificação da alma e do templo”.
Portanto, o olfato é teologicamente um sentido de passagem — ele não fixa o olhar, mas sugere o invisível, educa o desejo e prepara o espírito para a contemplação.
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🌿 Síntese
O que Montaigne intuiu pela via filosófica, a Igreja vive e celebra pela via sacramental:
Aspecto
Função dos odores; Natureza do efeito; Finalidade; Símbolo central
O olfato, na liturgia, não é detalhe estético, mas um sacramento do invisível: aquilo que se sente, mas não se toca, é figura do próprio mistério de Deus que se revela discretamente e se deixa perceber por quem tem o coração desperto.
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É importante compreender historicamente porque os protestantes excluíram essa prática litúrgica, e a mudança profunda na teologia da corporeidade e da mediação sensorial dentro do cristianismo ocidental.
A questão do uso do incenso e dos elementos sensoriais na liturgia não é meramente estética; ela toca o modo como a fé se relaciona com o mundo material — e, portanto, com a encarnação de Cristo.
Vamos analisar em três etapas:
1️⃣ As razões históricas e teológicas da rejeição protestante ao incenso;
2️⃣ As consequências culturais e espirituais dessa ruptura;
3️⃣ O paradoxo contemporâneo: o retorno sensorial nas igrejas neopentecostais.
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🕯️ 1. A rejeição protestante ao incenso: contexto histórico e teológico
A Reforma do século XVI nasce como reação à crise da Igreja medieval: abusos do clero, comercialização das indulgências, clericalismo e distanciamento do povo. Nesse contexto, o simbolismo litúrgico sensorial (incenso, imagens, velas, relicários, música coral, arquitetura sacra) foi, aos olhos dos reformadores, sinal de uma religião exteriorizada — uma fé reduzida a ritos e objetos, em vez de uma relação interior com Deus.
a) A crítica de Lutero
Martinho Lutero, embora mantivesse uma compreensão sacramental da Eucaristia (presença real de Cristo), via o uso do incenso e de outros ritos visuais como práticas humanas que desviavam da Palavra.
Para ele, a fé devia ser ouvida, não sentida. A ênfase litúrgica desloca-se da estética sensorial para o auditivo: a Palavra proclamada e o canto congregacional substituem o ritual simbólico.
O princípio teológico é o sola Scriptura — só a Escritura contém o que é necessário à salvação —, o que eliminou os elementos sem fundamento explícito no Novo Testamento.
b) Zwinglio e Calvino: o ascetismo litúrgico
Os reformadores suíços (Ulrico Zwinglio e João Calvino) foram ainda mais radicais. Para eles, o uso de imagens, incenso e ornamentos era idolatria.
Calvino escreve nas Institutas:
“Nada é mais contrário à natureza de Deus do que representá-lo sob forma visível.”
Daí nasce o culto despojado, centrado na Palavra, no silêncio e na simplicidade do espaço.
O incenso, por não ser “necessário à fé”, foi visto como “resquício pagão”.
O movimento de “purificação” das liturgias visava libertar a fé daquilo que era considerado superstição. A espiritualidade se interioriza e racionaliza, e o corpo é reduzido a instrumento secundário — a graça torna-se mais “intelectual” do que “sacramental”.
c) Consequências culturais
Essa rejeição afetou a arte e a arquitetura: as igrejas protestantes passaram a ser brancas, sóbrias, centradas no púlpito (símbolo da Palavra), em vez do altar (símbolo do sacrifício).
O incenso, como elemento que une corpo, sentido e transcendência, desaparece porque o sensível é considerado suspeito.
O historiador litúrgico Romano Guardini nota que aqui ocorre uma “ruptura antropológica”:
“O homem deixa de ser corpo que reza e torna-se apenas mente que crê.”
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🕊️ 2. A perda do simbolismo e o empobrecimento da experiência
Sem a mediação simbólica dos sentidos, o cristianismo reformado entrou em tensão com a dimensão encarnatória da fé.
A liturgia católica e ortodoxa sempre entendeu o culto como reencontro com a Criação transfigurada — tudo, inclusive os odores e a beleza sensível, pode tornar-se via de Deus.
Com a Reforma, essa visão sacramental cede lugar à racionalidade religiosa e à moralização da fé.
O resultado foi uma forma espiritual mais ética do que mística, mais intelectual do que estética.
A relação com o invisível passou a depender do discurso e da emoção individual, não do símbolo partilhado.
Com o tempo, essa espiritualidade puritana, sem espaço para o corpo, gerou reações — tanto dentro do protestantismo (movimentos pietistas e avivalistas) quanto fora (romantismo, misticismo, espiritualidades orientais).
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🔥 3. O retorno sensorial nas igrejas neopentecostais: a nova estética do sagrado
Curiosamente, as igrejas neopentecostais contemporâneas estão, de certo modo, revertendo esse empobrecimento sensorial — mas num registro diferente.
Elas buscam reencantar a experiência religiosa não mais por meio de símbolos sacramentais, mas através de estímulos emocionais e sensoriais imediatos:
• iluminação cênica (paredes escuras e luzes direcionadas),
• música envolvente e ritmada,
• efeitos sonoros, fumaça e ambientação teatral.
Esses recursos atuam sobre os mesmos canais psíquicos que a liturgia tradicional — visão, audição, emoção —, mas sem a mediação sacramental nem o referente teológico da transcendência.
O sentido aqui não é contemplativo, mas afetivo e performático. O fiel é conduzido não à purificação dos sentidos, como dizia Montaigne, mas à sua excitação.
a) Do símbolo à sensação
Enquanto o incenso da liturgia católica representa a oração que sobe ao céu — uma realidade espiritual invisível —, a luz e o som nas igrejas modernas buscam produzir efeito psicológico imediato: sentimento de presença, euforia, catarse.
É o deslocamento do sagrado como mistério para o sagrado como experiência.
b) O risco teológico
Ao tentar restaurar o “sensorial”, o neopentecostalismo, em muitos casos, substitui o símbolo que conduz ao invisível por uma estética que prende ao visível.
É a “espiritualidade do espetáculo”, já diagnosticada por teólogos como Joseph Ratzinger (Bento XVI), que alertava para o perigo de confundir “celebração” com “evento emocional”.
“Quando o culto se torna mera expressão sensível sem referência ao Mistério, ele deixa de ser liturgia e torna-se performance.” (Introdução ao Espírito da Liturgia, 2000)
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🌿 O caminho do reencontro
Historicamente, portanto:
• Os protestantes rejeitaram o incenso por temor da idolatria e da materialidade, priorizando a fé interior e racional.
• A cultura moderna herdou essa desconfiança do sensível, fragmentando o humano.
• As igrejas neopentecostais, ao tentar reagir, recuperam o sensorial, mas sem reconciliação plena com o simbolismo sagrado.
A tradição católica, porém, permanece como guardiã do equilíbrio entre razão e corpo, palavra e símbolo, fé e beleza, onde os sentidos não são suprimidos nem idolatrados, mas educados e transfigurados pela graça.
Como diria Bento XVI, retomando Santo Agostinho:
“O verdadeiro culto é aquele em que o coração se faz incenso e o homem inteiro se torna oferenda a Deus.”
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A tradição oriental é, de fato, o coração do simbolismo litúrgico do incenso — nela, o olfato ocupa um papel teológico e místico essencial, ligado diretamente à pneumatologia (doutrina do Espírito Santo) e à teologia da transfiguração do mundo sensível.
A seguir, apresento uma análise patrística e simbólica do incenso nas liturgias orientais — siriana, bizantina e copta — em continuidade à reflexão anterior, mostrando como essas tradições preservaram o sentido profundo do perfume sagrado como manifestação da presença divina.
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🌿 O olfato e a teologia da presença: o corpo como templo do Espírito
Na antropologia litúrgica oriental, os sentidos não são portas de dispersão, mas portas do mistério.
O olfato, em particular, é visto como o mais espiritual dos sentidos corporais, porque percebe o invisível — aquilo que não se vê, mas se sente pela interioridade.
Enquanto a visão e o tato operam por contato e forma, o olfato capta uma presença que se difunde, uma realidade imaterial que permeia o espaço.
Por isso, os Padres do Oriente associam o incenso ao Sopro divino, ao Espírito que enche o cosmos: invisível, mas perceptível em seus efeitos.
“Assim como o perfume se espalha sem que se veja sua substância, assim o Espírito Santo preenche o universo com a fragrância da vida divina.”
— São Basílio Magno, Sobre o Espírito Santo, cap. XIX.
Na liturgia, portanto, o perfume não é um adorno, mas um sinal epifânico: torna sensível o mistério do Espírito.
A teologia oriental não separa corpo e alma — por isso, o culto é total: o ouvido ouve, o olho contempla, o olfato respira o invisível.
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🕊️ A simbologia do incenso na tradição bizantina
Na Liturgia de São João Crisóstomo (a forma principal do rito bizantino), o uso do incenso é abundante e altamente teológico.
O sacerdote incensa o altar, o ícone de Cristo, da Mãe de Deus e dos santos, depois o povo.
Cada gesto simboliza a difusão da graça: do altar (Cristo) para os membros de Seu Corpo (a Igreja).
A fumaça ascendente evoca o Salmo 140(141),2:
“Suba a minha oração como incenso na tua presença, e o levantar de minhas mãos como sacrifício vespertino.”
Mas na teologia bizantina, essa imagem é mais que metafórica. A fumaça que sobe não apenas representa a oração: ela participa da própria elevação espiritual da assembleia, unindo a criação ao Criador.
Por isso, São João Crisóstomo comenta:
“Quando o perfume do incenso enche a igreja, ele proclama o mistério da oração dos santos que sobe ao trono de Deus, unindo céu e terra.” (Homilia sobre o Salmo 140).
A função do incenso é cósmica: reconciliar o sensível e o espiritual, restituindo ao mundo sua capacidade de louvar.
Na mentalidade oriental, o pecado “tornou o mundo inodoro” — o incenso, então, é sinal da restauração do perfume perdido do Éden.
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🔥 O rito siriano: o incenso como símbolo da Encarnação e do Espírito
A liturgia siríaca é uma das mais antigas do cristianismo e expressa um profundo simbolismo místico.
Nela, o incenso representa a união do divino e do humano.
O carvão ardente é símbolo da divindade de Cristo; o grão de incenso, de sua humanidade. Quando ambos se unem e exalam perfume, é a Encarnação que se torna fragrância de salvação para o mundo.
“O fogo e o incenso se unem e produzem um perfume: assim o Verbo e a carne se uniram, e o mundo inteiro sentiu o doce odor da vida.”
— Efrém, o Sírio, Hinos sobre a Natividade, 10,12.
Na teologia siriana, essa imagem é riquíssima. O Espírito Santo é comparado ao vento que espalha o perfume — e o altar é a criação inteira, onde Deus e o homem se encontram.
Por isso, durante a anáfora (oração eucarística), o diácono move o turíbulo em gestos circulares, envolvendo toda a assembleia: é o Espírito que “paira sobre as águas” (Gn 1,2), preparando a nova criação.
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✨ A tradição copta: o incenso como presença e intercessão
Na liturgia copta (egípcia), o incenso é quase constante e profundamente venerado.
Os Padres coptas veem nele três significados principais:
1. A presença de Deus no meio do seu povo – como na nuvem do Sinai (Ex 40,34);
2. A oração dos santos – subindo diante do trono divino (Ap 8,3-4);
3. A intercessão de Maria e dos mártires, cuja vida é “perfume derramado”.
“O incenso é o símbolo da Mãe de Deus, da qual subiu ao mundo o doce perfume do Salvador.”
— Teódoto de Ancira, Homilia Mariana, séc. V.
Durante o ofertório, o sacerdote incensa o altar, depois caminha entre os fiéis, repetindo:
“Cristo está em nosso meio.”
E o povo responde:
“Ele está e estará.”
Esse gesto torna visível o que o incenso realiza invisivelmente: a presença real e contínua do Emanuel, Deus conosco.
O perfume é, portanto, uma teofania: sinal sensível de uma presença que não se vê, mas se sente com o coração purificado.
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🌸 Perspectiva patrística: o perfume como símbolo do Espírito e da santificação
Os Padres do deserto e os místicos do Oriente falam do perfume espiritual como atributo dos santos e sinal da graça.
São Macário, o Egípcio, descreve:
“A alma que recebeu o Espírito Santo sente dentro de si uma doçura inefável, como perfume suave que inunda todo o ser.” (Homilias Espirituais, I,12).
O incenso, nesse sentido, não é um objeto litúrgico isolado, mas participa da economia sacramental da santificação: ele é a linguagem do corpo purificado, o prolongamento da oração interior.
São Gregório de Nissa vai além:
“O perfume, como o Espírito, penetra tudo sem ser visto. Ele é sinal da comunhão: não pertence a um só, mas a todos que respiram.” (Sobre o Cântico dos Cânticos, Homilia IV).
Para os Padres, o olfato espiritual é o sentido da discernimento do Espírito, e o incenso educa esse sentido, predispondo a alma à contemplação.
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🌺 Síntese simbólica e teológica
Assim, o incenso é símbolo total: cósmico, cristológico e pneumatológico.
Ele une corpo e espírito, tempo e eternidade, matéria e graça.
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🕯️ O perfume do Espírito e a pedagogia dos sentidos
Enquanto o Ocidente moderno tendeu a espiritualizar o culto (privilegiando a razão e a escuta), o Oriente cristão manteve viva a mística do sensível transfigurado.
O incenso é, nesse sentido, uma teologia olfativa: ensina-nos que o Espírito Santo se comunica não apenas à mente, mas a todo o ser humano — corpo, alma e sentidos.
A Igreja, respirando o perfume de Cristo, realiza o que diz São Paulo:
“Graças sejam dadas a Deus, que sempre nos conduz em triunfo em Cristo e, por nosso intermédio, manifesta em todo lugar o bom perfume de seu conhecimento.” (2Cor 2,14)
Em última instância, o uso do incenso é uma profissão sensível de fé na Encarnação: o invisível se faz respirável.
O perfume que sobe ao céu é o sinal de que o mundo, purificado, volta a exalar o aroma do paraíso perdido — agora reencontrado em Cristo, o “perfume eterno do Pai”.
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A seguir está a conclusão do estudo à luz do pensamento de Joseph Ratzinger (Bento XVI), especialmente conforme exposto em “Introdução ao Espírito da Liturgia”, integrando sua crítica à “espiritualidade do espetáculo” e sua defesa da verdadeira essência teológica do culto cristão.
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✨ Conclusão: Do perfume sensível ao perfume do Espírito — a liturgia como epifania da Verdade
Em “Introdução ao Espírito da Liturgia”, Joseph Ratzinger adverte que a liturgia cristã corre o risco constante de se reduzir a uma autoexpressão comunitária, a um “evento emocional” ou a uma forma de entretenimento religioso.
Ele escreve:
“Quando a liturgia se torna apenas uma autocriação da comunidade, ela deixa de ser liturgia e se torna um círculo fechado em torno de si mesma. A adoração deixa de subir para Deus e passa a ser uma celebração de nós mesmos.”
(Introdução ao Espírito da Liturgia, cap. 1)
Essa advertência toca diretamente a reflexão que fizemos sobre o uso simbólico dos sentidos — especialmente o olfato e o incenso — tanto no Oriente quanto no Ocidente.
Ratzinger não rejeita a dimensão sensorial do culto; ao contrário, ele a entende como sinal sacramental do Mistério. O perigo, porém, está em usar o sensível para despertar emoções, e não para conduzir à presença real do Invisível.
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🌿 A redescoberta da liturgia como “respiração” do Espírito
O incenso, na tradição bíblica e patrística, é o símbolo dessa respiração divina: o Espírito Santo que invade, purifica e eleva.
Na visão de Ratzinger, o verdadeiro culto nasce da escuta obediente e da abertura ao Espírito, não da busca por intensidade sensorial ou estética.
Ele diz:
“A liturgia não é uma representação teatral. É participação no sacrifício de Cristo, que nos introduz na adoração eterna.”
(Introdução ao Espírito da Liturgia, cap. 3)
Portanto, o perfume litúrgico — quando compreendido espiritualmente — não é um artifício para provocar emoção, mas um veículo de contemplação, uma “epifania do invisível”, que torna presente a comunhão dos santos e o sopro vivificante do Espírito.
No culto verdadeiramente cristão, o símbolo não substitui o mistério, ele o revela.
O incenso, o canto, a luz, o gesto e o silêncio são linguagens do corpo e da alma em sintonia com o Espírito. Mas quando essas linguagens se tornam fins em si mesmas, a liturgia se transforma em espetáculo — uma espiritualidade voltada para o impacto, não para a adoração.
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🕊️ A espiritualidade do espetáculo e o eclipse do mistério
Ratzinger — antecipando críticas que hoje muitos teólogos fazem às chamadas “espiritualidades do evento” — via com clareza que a cultura contemporânea tende a substituir o sagrado pelo emocionalmente intenso.
O culto passa a ser avaliado por sua “energia”, sua “experiência sensível”, suas “atmosferas”.
Essa tendência, que também atinge ambientes neopentecostais ou pós-modernos, revela o deslocamento do centro: do Mistério de Deus para a sensação do homem.
É uma forma moderna de idolatria — o culto ao “sentir” em vez do culto ao “Ser”.
Ratzinger denuncia esse desvio com palavras proféticas:
“A liturgia não é feita para o prazer dos sentidos, mas para o encontro com o Deus vivo.
Quando a assembleia se transforma em produtora de emoções, perdemos a direção da cruz.”
(Introdução ao Espírito da Liturgia, cap. 4)
Nessa chave, compreende-se que o verdadeiro perfume da liturgia não é o aroma do incenso físico, mas a fragrância da obediência e do amor que sobe do coração purificado.
O incenso material, nas mãos de quem vive em verdade, torna-se o símbolo eficaz da entrega interior: é a alma que se consome no fogo do amor divino.
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🔥 A beleza que evangeliza: a liturgia como transfiguração, não performance
Ratzinger insiste que a beleza litúrgica é essencial, mas ela deve ser transparente ao Mistério, nunca manipuladora.
Na sua teologia, a beleza é o “resplendor da verdade” (pulchritudo splendor veritatis), e não um artifício estético.
Quando o incenso sobe diante do altar, ele é sinal da criação inteira sendo transfigurada; quando a luz penetra a penumbra da igreja, é o símbolo da ressurreição; quando o silêncio envolve a assembleia, é o Espírito que fala no indizível.
Mas se esses elementos são instrumentalizados para criar “efeitos de impacto”, eles perdem sua alma e tornam-se puro artifício.
O Papa Bento XVI via na liturgia oriental um modelo de equilíbrio: o sensorial está a serviço do espiritual; o mistério não se explica, se respira.
A ortodoxia oriental, com seu uso intenso do incenso e da iconografia, conserva o senso de que o corpo humano é templo e teofania, e que a adoração é sinfonia dos sentidos purificados.
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🌺 O perfume de Cristo: a autêntica espiritualidade do culto
A verdadeira liturgia, diria Ratzinger, é a que conduz a assembleia ao “perfume de Cristo” (2Cor 2,15) — aquele que não se fabrica, mas se recebe.
O incenso que sobe não é mera estética: é o símbolo da vida oferecida, da caridade que se consome, da santidade que perfuma o mundo.
Nesse sentido, o cristão é chamado a tornar-se ele próprio incensário vivo:
• seu corpo, altar;
• sua oração, perfume;
• sua caridade, fogo que eleva.
A liturgia não é, pois, “evento” — é epifania.
Não é “emoção coletiva” — é adoração trinitária.
Não é “performance estética” — é transfiguração do mundo em louvor.
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🙏 Oração e Compromisso Final
Senhor, faze de nós incenso vivo diante do teu altar.
Purifica o nosso coração de toda busca de espetáculo,
e dá-nos o perfume da humildade e da adoração.
Que cada gesto, cada canto, cada silêncio,
revele a tua presença e não a nossa vaidade.
Ensina-nos, Espírito Santo, a celebrar com o corpo e com a alma,
mas com o coração voltado para o invisível.
Que o nosso culto seja verdade e amor,
e que o mundo, ao nos ver celebrar, sinta o bom perfume de Cristo.
Compromisso espiritual:
Nesta semana, quero entrar em cada liturgia não como espectador,
mas como oferenda viva; quero respirar o perfume do Espírito,
e deixar que Ele transforme em louvor cada ação da minha vida.
Amém.
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