O Mundo se Tornou Ateu… E a Culpa é Nossa?

 


É nesta sociedade ferida pelo ateísmo que devemos ser apóstolos de Deus. Não devemos ficar em lamentos inúteis, dizendo: ‘Como está o mundo?’ ou ‘Onde vamos parar?’ Jesus Cristo nos tornou responsáveis pela direção do mundo. Vós sois o sal da terra. Se o sal perde o sabor, com o que lhe será restituído o sabor? Para nada mais serve, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens (Mateus 5, 13-16). Se o mundo está em mau estado, é, entre outras coisas, porque os cristãos deixaram de salgar e iluminar. E se o mundo se tornou ateu, é porque os cristãos, em certa medida, também se tornaram ateus.

Soa estranho, como um cristão pode se tornar ímpio? Pode, e ele pode tornar o mundo ateu.

Tornamos-nos ateus quando agimos na prática como ateus, Ou seja, guiando-nos por princípios ou máximas que deveriam ser incoerentes para quem está convencido da presença de Deus. Por exemplo, quando construímos nosso pequeno mundo sem Deus, o mundo da família, do trabalho, da escola, da universidade, das amizades. Quando a relação com Deus se reduz a um pai nosso, a orações subjetivas, egoístas. Deus é tão pequeno para alguns que eles podem acertar suas contas com Ele em menos de 60 segundos por dia e em 45 minutos por semana.

De forma incomparável, gasta-se mais na verificação do correio eletrônico e nas redes sociais do que no exame da consciência e nas relações com Deus. Se isso não é ateísmo, o que seria o ateísmo? O mesmo pode ser dito daqueles que prescindem de Deus em sua vida moral. Aqueles que vivem no pecado, longe da graça, acostumados à morte da alma, jogando com o perigo da condenação eterna. Ou quando a ideia de Deus não anda de mãos dadas com o ensinamento de Jesus Cristo. Um Deus que não é pai, nem providente, nem próximo, nem absoluto.

Algo semelhante se diz daqueles que vivem como se Deus não tivesse encarnado, Nem tivesse morrido na cruz por todos os homens. É o que acontece com quem não dá espaço em suas vidas à penitência (abstinência, jejum…), à oração, ao arrependimento. E o que devemos pensar daqueles que não se preocupam em conhecer a Deus, ou nem se preocupam com seu analfabetismo religioso?

Quantos cristãos ignoram o Catecismo Elementar, ou inclusive os Dez Mandamentos? Que surpresa teríamos se ficássemos à porta do templo para perguntar a cada cristão que sai da missa, do culto: Quantos são os sacramentos ou quais são os preceitos da igreja? E quantos vivem as virtudes que Jesus Cristo ensinou, como o único caminho para a eternidade, isto é, para Ele, a pureza e castidade, perdão das ofensas, caridade, obras de misericórdia para os pobres e os indefesos, oração? Quantos, ao contrário, vivem com seus pensamentos absorvidos por coisas que não deixam espaço para Deus? O bem-estar, o luxo, compra e prosperidade, a moda, dinheiro, … numa palavra, o mundo. 

Esquecendo que Jesus Cristo disse que ninguém pode servir a dois senhores, “Porque ou odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (Mateus 6,24). E não digamos nada sobre aqueles que professam a medida mais séria do ateísmo prático;  Aqueles que aceitam ou apoiam a cultura da morte, o aborto, a eutanásia, droga. Essa oposição à vida é uma expressão da negação do Deus que é vida, E pensar que muitas leis que atropelam os direitos divinos, são redigidas, assinadas ou votadas por pessoas que se dizem cristãs. 

Devemos, portanto, ser realistas. O mundo do qual reclamamos e nos escandalizamos, em parte, nós mesmos o moldamos. Devemos, portanto, assumir nossa responsabilidade de refazê-lo, recristalizá-lo, Como diz São Paulo, “estabelecer todas as coisas em Cristo” (Efésios 1,10). 


Responsabilidades 


O Mundo Se Tornou Ateu — E a Culpa É Nossa

Sim, a culpa pode ser nossa.

Antes de apontar o dedo para o mundo e acusá-lo de se afastar de Deus, é hora de olharmos para dentro. Não será que nós, cristãos, com nossas palavras ocas e vidas incoerentes, temos contribuído para o silêncio de Deus no coração da humanidade?

O teólogo Cornelio Fabro já dizia: algumas formas de ateísmo são um grito contra a imagem distorcida que transmitimos de Deus. E se for verdade que muitos abandonaram a fé não porque rejeitaram Deus em si, mas porque rejeitaram o “deus” frio, severo e impessoal que lhes foi apresentado? Um “deus” sem compaixão, sem ternura, sem misericórdia — distante, como um juiz impassível. Quem poderia amá-lo?

Por outro lado, hoje pregamos — e talvez até vivamos — outro erro oposto: um “deus” que não se importa, que não se move nem para o bem, nem para o mal. Um “deus” que abraça o adúltero e o fiel da mesma forma, que não diferencia o mentiroso do íntegro, o preguiçoso do dedicado. Chamamos isso de misericórdia, mas na verdade é omissão. E essa omissão prega o ateísmo silenciosamente, todos os dias.

Dizemos crer, mas vivemos como se Deus não existisse.

“Mostra-me a tua fé sem obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas obras.” (Tg 2,18)

Quantas vezes a nossa incoerência não foi o verdadeiro escândalo que afastou corações de Deus? As palavras de São Paulo aos Romanos ainda ecoam como denúncia:

Você, que ensina os outros, por que não ensina si mesmo? Você que diz que não se deve roubar, rouba? […] Não é de admirar que as Escrituras digam: ‘Os gentios blasfemam o nome de Deus por causa de vocês.’” (Rm 2,21-24)

O escândalo é um veneno. E ele tem envenenado gerações.

Cristo mesmo já advertia: “É inevitável que venham escândalos, mas ai daquele por quem vierem.” (Lc 17,1)

E São Pedro, com dureza amorosa, alertava: “Por causa deles, o caminho da verdade será difamado.” (2Pd 2,2)

É por isso que São João Paulo II, ao denunciar o avanço do materialismo e do ateísmo como “uma nova religião do pensamento invertido”, conclamou os cristãos a se tornarem testemunhas do Deus vivo.

“Se tudo é permitido, então Deus não existe.”

— Ivan Karamazov (Dostoiévski)

Mas como testemunhar esse Deus em um mundo cego e surdo?

Com uma fé viva. Uma fé que amadurece. Que busca. Que se forma.

Não é suficiente apenas dizer “eu creio”. É preciso compreender o que se crê. Amar o que se crê. Viver o que se crê.

Isso exige estudo: da Palavra, da Tradição, do Magistério.

Mas exige ainda mais: conversão contínua. Uma vida entregue à vontade de Deus, com obras de misericórdia, compaixão e verdade.

É assim que os santos mudaram o mundo. Não por discursos inflamados, mas por vidas que eram uma oração viva. Teresa de Calcutá, Damião de Molokai, Dom Orione… seus gestos falavam mais alto que mil sermões. Cada um deles gritava silenciosamente: Deus existe!

Sejam perfeitos, como vosso Pai celeste é perfeito.” (Mt 5,48)


E agora?

Agora é a hora de reagir. De calar o ateísmo com a verdade de uma vida transformada.

De nos tornarmos cartas vivas do Evangelho.

De devolver ao mundo o rosto amoroso, justo e verdadeiro de Deus.

Não importa o quanto o mundo resista.

Nosso chamado é o mesmo: ser luz, sal e fermento — mesmo que em silêncio.

A maior prova da existência de Deus é um cristão coerente.



Como crescer em liberdade


Tudo o que existe é uma dádiva, um dom de Deus. Não obstante, é comum tentarmos encontrar nas coisas e criaturas criadas por Deus a satisfação e o contentamento que tão somente o próprio Deus pode proporcionar. Quando a alma se fecha em torno das coisas e das pessoas deste mundo, buscando nelas a satisfação e o contentamento que apenas Deus pode oferecer, ela gera uma distorção em si mesma e nos outros.

Muitos escritores de espiritualidade chamam “desprendimento”  ao processo de despojar-se desse apego possessivo e egóico e dessa busca desenfreada por coisas e pessoas. O objetivo do processo de desprendimento não é deixar de amar as coisas e as pessoas deste mundo; ao contrário, trata-se de amá-las ainda mais verdadeiramente em Deus, sob o reinado de Cristo, no poder do Espírito Santo. As coisas e as pessoas tornam-se ainda mais belas e encantadoras quando vistas sob essa luz.

Esse processo de “abandonar” para amar mais apresenta quase sempre dimensões muito dolorosas, mas essa é a dor da verdadeira cura e libertação. Portanto, o desprendimento cristão é uma parte importante do processo pela qual entramos em um terreno de grande liberdade e alegria.

São Bernardo de Claraval pinta um quadro inspirador de como é essa vida de desprendimento.

“Por certo, na Igreja de Deus há pessoas espiritualizadas que o servem com fidelidade e confiança, falando com ele como um homem fala com um amigo, e cujos sentidos dão testemunho de sua glória. Mas apenas Deus sabe quem são essas pessoas, e, se desejais, estar entre elas, ouvi que sorte de pessoas, deverei ser.  Digo isso não como alguém que o sabe por experiência, mas como alguém que deseja viver assim. Mostrai-me uma alma que ama somente a Deus, e aquilo que deve ser amado por causa de Deus, para qual viver é Cristo e para qual isso tem sido uma realidade já há longo tempo,  uma alma que no trabalho e no descanso tenta ter Deus diante dos olhos e caminha humildemente com o Senhor, seu Deus, que deseja que sua vontade se une à vontade de Deus e que tenha recebido a graça de realizar tais coisas.”


Além disso, Deus deu à Santa Catarina de Sena uma compreensão impressionante de alguns dos motivos para a necessidade do desprendimento, 

“Pois as coisas criadas são menos que a pessoa humana. Elas foram feitas para vós, não vós para elas, e por isso elas jamais vos podem satisfazer.  Apenas eu posso satisfazer-vos. Queres que eu te diga porque elas sofrem? Sabes que o amor sempre causa sofrimento se se perde aquilo com que a pessoa se identificou. De alguma forma, essas almas identificaram-se com a terra em seu amor e, por isso, elas de fato se tornaram terra. Algumas se identificam com sua riqueza, outros com sua posição social, outras ainda com os filhos. Algumas me perdem em sua escravidão às criaturas, outras em sua grande indecência, transformaram seu corpo em feras selvagens. Elas gostariam de ser constantes, mas não são. 

Em verdade, elas são tão passageiras como o vento, pois ou elas acabam com a morte, ou minha vontade as priva exatamente das coisas que elas amavam. Elas padecem uma dor insuportável em sua perda. E quanto mais desatinada é seu amor por possuir, maior é seu pesar na perda. Se tivessem visto tais coisas como coisas emprestadas ao invés de suas, poderiam abandoná-las sem dor. Elas sofrem porque não têm o que desejam. Pois, como eu te disse, o mundo não pode satisfazê-las e estão insatisfeitas. Elas sofrem.”


São Bernardo de Claraval também destaca a deformidade da alma que se torna tão inimiga do mundo que passa a ser inimiga de Deus.

“Aqueles cuja alma está assim deformada não conseguem amar o noivo, porque não são amigos do noivo. Eles pertencem a este mundo. As escrituras dizem, todo aquele que quer ser amigo do mundo torna-se inimigo de Deus (Tiago 4,4.). Portanto, seguir e desfrutar o que é mundano deforma a alma. Ao passo que meditar sobre as coisas do alto ou desejá-las, (Colossenses 3,2,) constitui sua justiça.


Quais são algumas das áreas em que o desprendimento é importante? 


Dnheiro e posses. 


São João da Cruz estabelece um princípio muito importante: Não é a presença ou ausência de posses que revela o verdadeiro desprendimento, mas a liberdade interior do coração que não coloca sua confiança nas coisas - possuir ou conservar o que já temos, ou desejar ardentemente o que não temos, mas no cuidado do Pai.

A vida do cristão tem de ser diferente da vida daquele que não crê. Como todos os seres humanos, os cristãos precisam de certas coisas deste mundo para viver. Mas Jesus nos chama a viver primeiramente para o reino. Se o fizermos, ele promete que as coisas de que necessitamos para viver nesta terra também nos serão dadas. 


Conselho prático sobre o desprendimento

O verdadeiro contentamento vem, como veio para Paulo, de saber como viver com pouco e viver com muito (Filipenses 4.12). Confiando no cuidado de Deus e em seu controle providencial das circunstâncias de nossa vida. Em outras palavras, o contentamento de que falam as escrituras não depende de termos muito ou pouco dinheiro, mas de saber que o próprio Deus está cuidando de nós!


Prazer sensual.

Deus criou-nos para sentir e desejar prazer. O prazer em si não tem nada de pecaminoso, sendo uma capacidade maravilhosa que Deus nos deu de deleitarmos-nos com quem é verdadeiramente prazeroso. Nesse sentido, São Francisco de Sales destaca muitas vezes como Deus nos atrai para si pelo prazer que Ele nos dá em nosso relacionamento com Ele e como, na realidade, o próprio Deus sente prazer em seu relacionamento conosco. 

No entanto, todos os prazeres criados não passam de uma participação muito limitada no prazer eterno de conhecer Deus e habitar para sempre em seu reino, constituindo meras sombras dEle. Quando nos concentramos na busca desenfreada ou descomedida por prazer sensual, ela se torna um obstáculo ao prazer máximo, a união com Deus. 

Deus criou os prazeres terrenos como sinais, amostras e convites ao prazer da eternidade. Quando buscamos tais prazeres em desacordo com seu propósito, ou como se fossem fins em si mesmos, apartados de Deus, eles se transformam em obstáculos. Nossa natureza é, ao mesmo tempo, sensual e espiritual. Se buscamos o sensual de forma desequilibrada e desenfreada, podemos acabar por tornar-nos menos humanos, verdadeiras feras selvagens, cujo Deus é o ventre e cujo fim é a destruição (Filipenses 3.19). 

O que nos ajuda a evitar essa idolatria e suas consequências desastrosas é recordar que nosso lar verdadeiro é o céu e que estamos aguardando o retorno de Jesus, que transfigurará nosso corpo inferior à semelhança de seu corpo glorioso (Filipenses 3.20-21). É evidente que o oposto também pode ocorrer: uma espiritualidade desequilibrada, ilusória, que ignora o autenticamente humano, também pode desumanizar-nos, tornando-nos mais demoníacos que angelicais. 

De fato, como acontece com a avareza, a busca excessiva de prazer sensual pode transformar-nos em idólatras (Efésios 5.5). Quando dedicamos a maior parte do nosso tempo, atenção, pensamentos e aflições a algo diferente de Deus, corremos o risco de incorrer em idolatria, de cultuar, adorando, contemplando, elogiando, buscando, agradecendo algo que não é verdadeiramente Deus.

Conselho Prático Quanto à Castidade 

São Francisco de Sales ensina que a castidade é necessária a todos, tanto solteiros como casados, entendendo castidade como exercício adequado ou a inibição da função sexual. O santo deixa claro que é proibido qualquer envolvimento em prazeres sexuais fora do casamento e que precisamos proteger nossa mente, coração, memória e sentidos de modo a alcançar e preservar a adequada pureza nesse âmbito, sendo a melhor defesa a que ocorre o quanto antes. 


São Bernardo de Claraval aponta a curiosidade como o meio que o diabo usa para levar muitos ao pecado, e não apenas ao pecado sexual. Ele aponta a curiosidade como o primeiro degrau de uma descida de doze degraus da humildade ao orgulho, da graça à perdição. O conselho do santo é: devemos nos preocupar tão somente com o que precisamos saber em cada situação, instante a instante. 


São Bernardo de Claraval lembra-nos também que foi a curiosidade que levou-a à Queda e fala sobre Eva: 

Por que estais sempre olhando para ele, o fruto proibido, de relance? De que serve olhar para aquilo que estais proibidos de comer? Pois, quando estais olhando atentamente para algo, a serpente entra, sorrateira, em vosso coração e vos seduz. Ela engana a vossa razão com lisonjas, desperta o vosso temor com mentiras. Ela intensifica o vosso interesse e incita a vossa cobiça, aguça a vossa curiosidade e instiga o vosso desejo; oferece o que é proibido e subtrai o que foi dado, oferece uma maçã e rouba o Paraíso.


Orgulho

Foi um ato de orgulho que levou-a à Queda - Sereis como deuses (Gênesis 3.5). E foi um ato de humildade amorosa e obediente que tornou possível a redenção. A Bíblia fala muitas vezes com veemência da profunda perversidade do orgulho. 

“Tende em vós o mesmo sentimento que estava em Cristo Jesus, que, conquanto existisse na forma de Deus, não julgou sua igualdade com Deus, algo a que devesse agarrar-se, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de um servo, nascendo a semelhança dos homens, e encontrando-se em forma humana, ele se humilhou e se fez obediente até a morte e morte de cruz” (Filipenses 2.5-8). 

Romper com a busca egóica e possessiva, romper com o orgulho, é fundamental para o progresso na vida espiritual.

São Bernardo de Claravall aponta o orgulho como o princípio de todo pecado. Assim como o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, )Salmos 111.10), (Eclesiástico 1.16), o orgulho é o princípio de todo pecado, (Eclesiástico 10.15), pois, isto é orgulho, é assim que surge todo pecado - que sejais maiores aos vossos olhos do que são perante Deus, do que o são na realidade.

 A chaga profunda que o orgulho abre, em nossa essência, precisa ser curada antes que se possa restabelecer a união com Deus, tal como era no princípio. E Deus estabeleceu seu plano para salvar a raça humana, de tal modo que a salvação não pode ocorrer sem a destruição do orgulho. A fé é um instrumento simples, mas poderoso, que destrói o orgulho e torna saudável a salvação possível. 

“Pois todos pecaram e não alcançam o padrão da glória de Deus, mas ele, em sua graça, nos declara justos por meio de Cristo Jesus, que nos resgatou do castigo por nossos pecados. Deus apresentou Jesus como sacrifício pelo pecado, com o sangue que ele derramou, mostrando assim sua justiça em favor dos que creem. Podemos então nos vangloriar de ter feito algo para sermos aceitos por Deus?” Romanos 3:23-27

Esses poucos versículos dizem muita coisa, e os temas tratados neles são desenvolvidos ao longo da Bíblia. Em suma, por causa da queda, todos estão isolados de Deus. Mediante o sacrifício de Cristo, Deus oferece a todos, ainda que não mereçam o dom da redenção. Se realmente compreendemos é nossa situação, compreendemos que não somos merecedores de salvação, e que ela não é outra coisa senão uma dádiva de Deus, então, não temos motivo nenhum para orgulho, exceto a cruz de Cristo e nossa fraqueza e necessidade, duas coisas de que a Bíblia diz que devemos nos orgulhar. O profundo reconhecimento dessa verdade, vivenciada em nossa vida cotidiana, é o que possibilita a destruição do orgulho. Temos de receber, não alcançar, para sermos salvos. Portanto, não há nada que possamos fazer para merecer ou conquistar a salvação. 


Essas noções fundamentais da realidade de nossa condição e as verdades básicas sobre a salvação permanecem ocultas e desconhecidas a muitos cristãos contemporâneos. Apesar disso, erguem-se cada vez mais vozes contemporâneas para dar testemunho dessas verdades tão importantes, fazendo eco à voz dos santos. O cardeal Raniero Cantallamessa, por muitos anos, é uma dessas vozes. 

Ele diz: No entanto, São Paulo insiste muito em uma coisa, tudo isso se dá gratuitamente, pela graça, como uma dádiva. Ele retoma diversas vezes esse argumento usando termos diferentes e ficamos imaginando porque Deus é tão irredutível nesse quesito. É porque ele quer excluir da nova criação o cancro que arruinou a primeira criação, a vanglória do homem. 

O homem esconde no coração a tendência inata de pagar seu preço a Deus, mas nenhum homem pode comprar seu próprio resgate nem pagar a Deus o preço de sua vida (Salmo 49.8). Querer pagar nosso preço a Deus através de nossos méritos é outra forma do esforço interminável de tornar-nos autônomos e independentes de Deus, e não apenas autônomos e independentes, mas, em verdade, credores de Deus. Porque, para aquele que trabalha, o salário não é considerado um presente, mas é devido (Romanos 4,4).

Na jornada espiritual, é muito fácil começarmos a pensar que a salvação do mundo e nossa própria salvação dependem apenas de nós, das estruturas que construímos, nossos costumes, nossos padrões, nossa liderança, nosso grupo, a duração de nossa vida, nossa virtude, nossa fidelidade, nosso caráter, nossa história, nossa disciplina, nossas devoções, nossos prédios, nossas tradições, nossa inteligência, nossa vontade. 

Em nossa resposta a Cristo, corremos o enorme perigo de permitir que tais coisas ofusquem o lugar supremo da cruz de Cristo em nossa vida, na vida da igreja e na vida do mundo. Se nos permitimos transferir gradualmente nossa confiança para outras coisas, além da graça não merecida que nos ganha no Calvário, nós acabamos por colocar nossa confiança nas obras de nossas mãos e nos feitos de nossa carne. Portanto, para aqueles que pensam que são algo, é fundamental que sejam reduzidos a nada, de modo que não tenham motivos de vanglória diante de Deus. Isso é humildade e é assim que deve ser.

Toda carne deve vir a ti com sua carga de perversidades. Somos subjugados por nossos pecados, apenas tu os pode perdoar. (Salmo 65, 3 e 4) 


Infelizmente, a tendência de queremos salvar a nós mesmos, de não ter de depender inteiramente de Deus, é muito forte em todos nós, sobretudo no mundo moderno de hoje. O grande teólogo francês Yves Congar faz uma advertência a isso a respeito: 

Com o constante progresso da ciência, o homem vem perdendo a consciência de que ele depende de Outrem. Não obstante, a salvação consiste essencialmente nessa consciência da dependência. O homem não pode salvar-se a si mesmo, por seus próprios esforços. Somos salvos por Outrem. Os cristãos também estão expostos a esse risco.

Para o bem do mundo, para o nosso próprio bem e por respeito a Deus, precisamos desesperadamente, enquanto indivíduos e enquanto igreja, deixar de agir como se os bens espirituais e materiais que temos fossem méritos nossos ou derivassem de nossa própria vontade ou força. Ao contrário, eles são pura graça de Deus. 

É claro que nossa fé não será genuína se não se expressar progressivamente em uma vida de moralidade, oração e amor ao próximo (pelo que nos tornamos dignos de fato).Contudo, mesmo nisso, não restam dúvidas de que há a graça de Deus que nos faz capazes de viver de modo a agradar a Deus. Logo, devemos agradecer-Lhe  até mesmo pelas boas ações, os méritos -  que Ele preparou com antecedência para que nós os realizássemos. 

São Bernardo nos adverte que as pessoas verdadeiramente sábias reconhecerão com humildade e admitirão abertamente que seus méritos são dons de Deus e darão toda a glória a Ele.

Em suma, o santo quer que saibamos que a glória de Deus está tão somente passando por nós, pois não tem sua origem em nós.




Conclusão: Um chamado urgente à liberdade interior

O mundo está faminto. Faminto de sentido, de beleza, de liberdade real. Mas nós, cristãos, temos oferecido pão ou pedras? A verdade é que enquanto tentamos salvar o mundo com fórmulas, estruturas e discursos, nos esquecemos da única coisa que realmente pode salvá-lo: o Cristo vivo, crucificado e ressuscitado, operando em corações humildes e desapegados.

A liberdade que o mundo tanto deseja não está nas ideias nem nos sistemas — está no coração que se esvaziou de si mesmo para ser preenchido por Deus.

O que aprendemos dos santos — Bernardo, Catarina, Francisco de Sales, João da Cruz — é que o caminho da liberdade passa pelo desprendimento, pela castidade interior, pelo abandono dos ídolos sutis do ego, pela destruição do orgulho que insiste em querer controlar, merecer, comprar até mesmo a graça.

E o mais difícil? Tudo isso começa em nós. Antes de reclamarmos que o mundo se afastou de Deus, precisamos perguntar: será que não fomos nós que nos afastamos d’Ele primeiro, enquanto ainda falávamos em Seu nome?

Desprender-se das coisas e das pessoas não significa abandoná-las, mas amá-las com mais verdade, com mais leveza, com mais liberdade. Significa amar em Deus, com Deus e por Deus. E é aí que tudo muda. Porque quando isso acontece, o mundo finalmente volta a enxergar o brilho nos olhos dos que creem, a serenidade dos que não se apegam, a paz daqueles que não competem, mas servem.

O que você pode fazer agora?

Não espere por reformas externas. A reconstrução começa dentro.

  1. Examine seu coração. Onde está seu tesouro? No reconhecimento, na segurança, no controle? Ou em Deus?

  2. Rompa com os pequenos apegos que impedem você de amar mais. Seja o prazer, o dinheiro, a reputação, a opinião dos outros. Renuncie, para amar melhor.

  3. Volte-se à oração, à Palavra, à vida interior. Sem ela, você se tornará mais um ativista exausto, e não um cristão transfigurado.

  4. Peça a graça de amar a cruz. Não uma cruz teórica, mas aquela que está bem aí, na sua história, nos seus limites, nas suas feridas.

Deus não quer que você se salve sozinho. Ele quer habitar em você. Mas para isso, você precisa desocupar o lugar.

Então, feche os olhos agora — não para fugir do mundo, mas para enxergar melhor. Respire. Reconheça sua necessidade. Diga com sinceridade:

“Senhor, eu não posso, mas Tu podes. Faz em mim o que eu não sei fazer.”

Não é tarde.

Não é pouco.

É o início da verdadeira reconstrução.

E talvez, só talvez… se começarmos a viver assim, o mundo volte a crer.

Porque verá em nós não mais juízes do alto de tronos religiosos, mas irmãos feridos e curados, desprendidos e alegres, que refletem o rosto do Cordeiro.





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