A Palavra de Deus na vida de Cristo
Após o relato do batismo de Jesus, o evangelista Marcos prossegue sua narração, dizendo: “Jesus veio para a Galileia, proclamando a Boa Nova de Deus” (Mc 1,14). E dizia: “Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa-Nova” (Mc 1,15). Mateus, por sua vez, escreve: “A partir de então, Jesus começou a anunciar: ‘Convertei-vos, pois o Reino dos Céus está próximo’” (Mt 4,17). Com essas palavras, tem início o “Evangelho”, entendido como a boa notícia “de” Jesus – isto é, trazida por Jesus e da qual Jesus é o sujeito.
Enfatiza que este é o “início” de algo de novo não apenas na vida de Jesus, mas na própria história da salvação. A Carta aos Hebreus assim expressa a novidade: “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2). Tem início um tempo especial de salvação, um kairos novo, que se estende por cerca de dois anos e meio (do outono do ano 27 à primavera do ano 30 d.C.).
A pregação de Jesus é, portanto, um “mistério”, porque não contém apenas a revelação de uma doutrina, mas explica o próprio mistério da pessoa de Cristo; para compreender, é essencial que se considere tanto o que se precede – o mistério da encarnação – como o que se segue: o mistério pascal. Sem a palavra de Jesus, eles constituiriam eventos mudos.
“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Hb 3,7-8), aplica-a aos cristãos, dizendo: “Cuidai, irmãos, que não se ache em algum de vós um coração transviado pela incredulidade; que ninguém se afaste do Deus vivo. Antes, animai-vos uns aos outros, dia após dia, enquanto ressoar esse ‘hoje’” (Hb 3,12-13). Deus fala, pois, também hoje na Igreja e fala “no Filho”.
Todavia, como e onde podemos escutar esta sua voz?
Na Bíblia, a Palavra de Deus (dabar) constitui sempre um evento, especialmente na forma particular que assume nos profetas; é uma palavra-evento, isto é, uma palavra que cria uma situação, que realiza sempre algo de novo na história. A expressão recorrente – “a palavra do Senhor foi dirigida a...” – poderia ser assim traduzida: “a palavra do Senhor assumiu forma concreta em...” (em Ezequiel, Ageu, Zacarias etc.). Tais palavras-evento prolongam-se até João Batista.
Passado este momento, tal fórmula desaparece completamente da Bíblia e, em seu lugar, aparece uma outra; a Palavra se fez carne” (Jo 1,14). O evento agora é uma pessoa! Jamais se encontra a frase: “a Palavra de Deus veio a Jesus”, porque Ele próprio é a Palavra.
Estas são as Palavras de Deus “acontecidas” uma vez para sempre e concentradas na Bíblia, que voltam a ser “realidade ativa” toda vez que a Igreja as proclama com autoridade, e o Espírito, que as inspirou, volta a suscitá-las no coração de quem as escuta. “Ele receberá do que é meu para vos anunciar”, diz Jesus a propósito do Espírito Santo (Jo 16,14).
Em todo sacramento, distingue-se um sinal visível e a realidade invisível, que é a graça. A palavra que lemos na Bíblia, em si mesma, não é senão um sinal material (como a água no Batismo e o pão na Eucaristia), um conjunto de sílabas mortas ou, no máximo, uma palavra do vocabulário humano como as outras; entretanto, havendo a intervenção da fé e a iluminação do Espírito Santo, por meio de tal sinal entramos misteriosamente em contato com a verdade vivente e a vontade de Deus, e escutamos a própria voz de Cristo.
* Há um Podcast publicado que fala sobre como desfrutar da Palavra Viva pelo princípio da ARREPENDIMENTO: “Em Busca da Maturidade Cristã - com o título “O segredo da felicidade é a conversão dos vícios em virtudes” - link
Lendo “O mistério da Palavra de Deus”; Raniero Cantalamessa.
Comentários
Postar um comentário