A vida só faz sentido se corresponder à vontade de Deus
Um grão de trigo tem a força de mudar mentalidades e, lançado à terra, depois de morrer, dá nova vida e vida em abundância para todos os que têm fome.
Uma mão ressequida, desprezada por todos e ocultada ao olhar para não causar desdém, tem o poder de transformar uma sinagoga num lugar onde se vive um abraço.
A liturgia do 9º Domingo do Tempo Comum nos faz ler hoje os textos da Bíblia que falam do dia de descanso festivo: o sábado dos judeus e o domingo dos cristãos.
Na primeira leitura (Dt 5,12-15), ouvimos como Deus mesmo instituiu o sábado e lhe revelou o sentido. Relendo agora, num clima novo e com nova sensibilidade, este preceito do sábado, descobrimos com surpresa que originariamente ele não foi uma taxa estabelecida por Deus sobre o uso do tempo para as pessoas: “seis dias para vós e para os vossos afazeres e um dia para mim que sou vosso Deus!”. O ser humano e seu tempo são totalmente de Deus; amar a Deus com todo o coração e com todas as forças significa amá-lo em todos os momentos, não só no dia de sábado.
Então, por que o sábado? Antes de tudo, “para o homem!”. Depois de seis dias de trabalho – e que trabalho, numa época em que dependia dos músculos do homem – o corpo e o espírito têm necessidade de romper a espiral de fadiga, o ritmo de sua vida tem necessidade de uma pausa, de descanso. Deus sabe que a ganância do lucro e a excessiva preocupação com o alimento e com o vestir podem ser mais fortes do que a fadiga e manter o ser humano pregado desordenadamente ao próprio trabalho. Então, eis a sabedoria desse preceito de descanso festivo para que o homem compreenda que a vida vale mais do que o alimento e o corpo mais que o vestuário (cf Mt 6,25). Observar o dia de sábado é, portanto, um culto dirigido a Deus enquanto é um dever para consigo mesmo, um administrar corretamente as próprias forças e a própria vida; como, no plano sobrenatural, é vontade de Deus que sejamos “santos” (cf 1Ts 4,3), assim, no plano natural, é vontade de Deus que sejamos saudáveis.
Somente este é o motivo do sábado? Não! Nas entrelinhas do texto bíblico, descobrimos outro motivo, além daquele de descanso: “santificar o sábado” significa reservá-lo para Deus, reservá-lo a seu culto, para que ele entre no coração da vida social e comunitária, além da privada e individual da pessoa: Trabalhareis seis dias, mas no sétimo dia, sábado, dia de repouso, haverá uma santa assembleia (Lv 23,3). O sábado é o dia em que a gente se encontra junto, a gente se reúne numa “santa conversa”, para mostrar a própria pertença a Deus como seu povo e sua santa comunidade. Tal encontro semanal deve servir para outra finalidade importante: manter viva a recordação daquilo que Deus fez para seu povo: “Lembra-te que fostes escravo no Egito, de onde a mão forte e o braço poderoso do Senhor te tirou. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou observasses o dia de sábado” (Dt 5,15). O sábado é, portanto, em certo sentido, dia de recordação, memorial da própria eleição.
Agora, passemos do Antigo ao Novo testamento, da lei ao Evangelho, e precisamente ao evangelho proposto pela liturgia do 9º Domingo. Uma das batalhas mais duras e desgastantes que Jesus teve de enfrentar com a presunção e a estupidez humana foi em relação ao sábado; não podia mexer um dedo nesse dia sem se sentir imediatamente agredido por um coro de vozes escandalizadas: Como ele, que se proclama Messias, transgride o preceito do descanso festivo? Não é lícito fazer isto em dia de sábado (cf Mt 12,2ss). Os judeus tinham reduzido o preceito divino do repouso sabático a algo morto, e Jesus queria levar os homens a descobrir nele a genuína intenção de Deus, queria reformar o sábado e por isso proclama seu direito sobre o sábado: O Filho do Homem é senhor também do sábado (Mc 2,28).
Os judeus – ou ao menos seus mestres e doutores – tinham esquecido exatamente aquele motivo primordial que vimos na raiz do preceito divino: isto é, que o sábado fora instituído, sobretudo, “para o homem” e que, por isso, não devia ser transformado numa armadilha paralisante para o próprio ser humano. Caso seja necessário ir a algum lugar em dia de sábado, será permitido se a distância for de tantos passos; caso contrário, será violado o preceito e será cometido o pecado; não é permitido preparar o alimento neste dia, caso haja fome terá de ser consumida a refeição do dia anterior (cf Mt 12,1 ss). Aduzindo o exemplo de Davi, que comeu os pães santificados, Jesus tenta fazer compreender que o homem e suas exigências vitais não podem ser sacrificados ao preceito do sábado; não se pode fazer do sábado um fetiche: O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. Um modo totalmente novo de conceber as relações entre Deus e o homem é aberto com esta Palavra de Jesus: o mesmo relacionamento que está na base da nova oração: Pai nosso! [...]. Se Deus é Pai, é absurdo pensar que sacrifique o homem para descanso do homem. O Pai, disse-nos Jesus, é aquele que se pode importunar em qualquer hora, também à noite, quando se precisa de pão e todos estão de cama. Por isso Jesus disse: Meu Pai continua agindo até agora, e eu ajo também (Jo 5,17).
Em tempos recentes, sobre esta frase de Jesus (o sábado é para o homem) foram tiradas conclusões estranhas sobre a secularização na Bíblia e coisas semelhantes que eram seguramente alheias ao pensamento de Jesus. Ele, com efeito, não queria com tal palavra emancipar o homem do sagrado ou de Deus, mas até ligá-lo mais profundamente, quer dizer, no espírito e na verdade, antes que na letra.
Depois da ressurreição de Cristo, o preceito do sábado sofreu uma transformação. Todos os evangelistas evidenciam com insistência significativa que Jesus ressuscitou no primeiro dia da semana (cf Mt 28,1). Tal dia se tornou logo o dia mais importante para os cristãos; nele se reuniam para celebrar a Eucaristia (cf At 20,7); João nos apresenta os onze reunidos no cenáculo “oito dias depois da Páscoa” – isto é, no primeiro dia da semana – como o protótipo de tais assembleias (cf Jo 20,26). Entre os fiéis de língua grega, aquele dia chamou-se kyriakè (de Kyrios, isto é, Senhor) (Ap 1,10) e entre os latinos dominica (de Dominus = Senhor), isto é, “dia do Senhor”. Foi chamado também “dia do sol”, não tanto porque coincidia com o dia que os pagãos chamavam com tal nome, mas, sobretudo, porque ele lembrava a criação da luz acontecida no primeiro dia (Gn 1,3) e, mais ainda, porque ele recordava o dia em que “o sol da justiça”, Cristo Senhor, voltou vitorioso dos mortos. O Padres da Igreja o chamavam também “o oitavo dia”, pensando no descanso eterno que se instaurará depois da cansativa semana desta vida e da qual o domingo é símbolo.
A lei, seja ela qual for, só tem sentido se favorecer a resolução dos problemas concretos e se ajudar o homem a ser livre e feliz sem fazer distinção nem discriminação de qualquer espécie.
A lei do sábado determina a santificação deste dia, porque é “o sábado do Senhor, teu Deus”, é uma lei que procura favorecer a dignidade do homem que não vive para trabalhar, trabalha para viver, ao mesmo tempo que dá a todos, senhores e escravos, pais e filhos, homens e animais, o mesmo direito ao descanso.
A interpretação dos fariseus acrescenta a esta lei base, requisitos que ela não prevê e que em vez de favorecerem o homem, o oprimem e esmagam, com as proibições e obrigações que em nada têm a ver com a determinação de Deus. Deste modo, a lei, em vez de libertar, aprisiona e em vez de abrir caminho à felicidade traz a tristeza porque mantém pessoas na sombra, na margem, na periferia da vida, sem qualquer interferência ou participação nas decisões comuns e mesmo nas decisões da sua própria vida. É o caso do homem da mão paralisada.
Os fariseus colocam a lei em primeiro lugar e Jesus vem colocar o homem no meio, para que se veja o que devia ser evidente. Aquele homem é uma pessoa de direitos que não sairá da sombra, não tomará decisões importantes na sua vida, não participará nunca nas decisões fundamentais da sociedade, porque está marginalizado, embora esteja dentro da Sinagoga. Assim, o lugar onde ressoa a Palavra de Deus que tem poder para libertar e salvar, torna-se o lugar onde algumas pessoas, por norma os mais desfavorecidos, ficam na sombra, sem vida, sem liberdade, sem direitos, apenas por causa de uma lei que perdeu o seu verdadeiro sentido. Estas palavras ressoam no mundo de hoje, a grande sinagoga onde homens e mulheres, crianças e idosos, estrangeiros e residentes ficam esquecidos na margem da vida.
É por causa de situações como esta que o salmo 80 faz referência à voz de Deus que ressoa num dia de festa para mostrar que as aclamações, os aplausos, os cânticos e a música em honra do Senhor, não fazem sentido se as decisões de cada dia não correspondem à vontade do mesmo Deus e não significam que seguimos pelos seus caminhos.
Este ministério é um tesouro que transportam “em vasos de barro” (cf 2Co 4,13-5,1), na fragilidade e debilidade humanas, todos os que foram investidos, “para que se reconheça que um poder tão sublime vem de Deus e não de nós”. O conteúdo do tesouro é Cristo, a verdadeira luz que ilumina os corações. Do mesmo modo que Deus no início fez brilhar a luz “Deus, que disse: «Das trevas brilhará a luz»”, agora, nos tempos que são os últimos, “quem brilhou nos nossos corações” foi a “glória de Deus que se reflete no rosto de Cristo”.
Na fragilidade dos homens manifesta-se o poder de Deus que sustém todas as coisas em si e não em nós. Por isso, e só por isso, Paulo pode afirmar que a nossa vitória está onde se revela a nossa fragilidade “oprimidos, mas não esmagados”, “perplexos, mas não desesperados”, “perseguidos, mas não abandonados”, “abatidos, mas não aniquilados”. Do mesmo modo que trazemos em nós os sinais “da morte de Jesus”, trazemos também os sinais da “vida de Jesus” e podemos dizer “quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10).
É neste ponto que entra a novidade cristã. Esta recordação tem para nós conteúdos novos: a nova criação e o novo êxodo realizados na morte e ressurreição de Jesus. Cristo é a alma do domingo; ele é, em sentido forte, o “dia do Senhor”, isto é, o dia de Jesus Cristo. A lembrança da ressurreição predomina naturalmente sobre todas as outras, mas a Eucaristia que celebramos liga esta recordação à sua morte e se tem assim aquilo que os cristãos ortodoxos chamam justamente a “pequena páscoa”, ou “páscoa semanal”. O domingo realiza, de modo mais vigoroso do que habitualmente, o sentido da Eucaristia, que é anunciar a morte do Senhor, proclamar a sua ressurreição, na espera de sua vinda, isto é, na espera daquele oitavo dia eterno e sem fadiga no qual “estaremos sempre com o Senhor” (cf 1Ts 4,17).
As características deste dia repetem as do antigo sábado, da Bíblia: é um dia para o homem, dia de festa que rompe o ritmo monótono dos trabalhos e dos dias e permite uma pausa de restabelecimento do cansaço; é um dia para o Senhor destinado a celebrar a lembrança de suas maravilhas.
Este é o rico e profundo conteúdo do domingo, novo dia do Senhor. Também nós, porém, estamos expostos, como os hebreus, ao perigo de formalizar o preceito divino, de materializá-lo reduzindo a uma árida casuística:
A festa, assim como o sábado para os judeus ou o domingo para os cristãos, só têm sentido, só são dias consagrados ao Senhor se forem manifestação da ação que Deus opera em cada homem através da aceitação da sua vontade no cotidiano. Caso contrário, a festa não tem sentido porque não é uma festa em honra do Senhor, mas uma realidade puramente humana, pois Deus fica fora da festa como fica fora da vida. Em qualquer momento, no entanto, Deus está disposto a libertar o homem logo que este decida seguir pelos seus caminhos. Tanto o homem da mão ressequida como os fariseus estão necessitados da ação libertadora de Jesus. A diferença entre eles é que o homem escuta Jesus e faz o que este lhe diz e os fariseus permanecem de princípio a fim na “dureza dos seus corações”, o que entristece Jesus ao ponto de os olhar com indignação.
Também nós, os que celebramos o domingo, podemos ser pessoas duras de coração de tal modo que as nossas celebrações se tornam rotinas sem compromisso, onde faltam gestos de libertação e onde a voz de Deus ressoa como denúncia da nossa incapacidade de salvar e dignificar os que se encontram nas sombras da existência. Há situações de injustiça à nossa volta que requerem dos cristãos uma denúncia enérgica. Se não denunciamos as injustiças praticadas contra os mais pobres, os mais idosos, os estrangeiros, não celebraremos dignamente a festa do domingo.
Conscientes de que o dia consagrado ao Senhor é para nós o domingo, prestemos atenção aos gestos e palavras de Jesus para as reproduzirmos na nossa vida diária, na relação com os irmãos e na relação com Deus, tanto na vida familiar como social e comunitária, para que ninguém fique escondido na sombra e impedido de viver e participar na comunhão fraterna. Para que os injustiçados encontrem quem os defenda e as injustiças sejam denunciadas e trazidas para a luz do dia a fim de que todos as vejam.
A Igreja, num texto do Concílio Vaticano II, apresentou-nos o genuíno significado espiritual do domingo, dando uma formulação mais humana e menos casuística da obrigação da missa festiva: “Neste dia, pois, os cristãos devem reunir-se para, ouvindo a Palavra de Deus e participando da Eucaristia, lembrarem-se da Paixão, Ressurreição e Glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus [...]. O domingo deve ser lembrado e inculcado à piedade dos fiéis, de modo que seja também um dia de alegria e de descanso do trabalho” (SC, 106).
Dia de alegria e de festa: é bonito ver assim o domingo como a festa do povo cristão que não faz acepção de pessoas, e por isso torna-se sinal de sua redenção e sua eleição. Há um texto da Bíblia que expressa de modo comovente tudo isto: Este é um dia de festa consagrado ao Senhor, nosso Deus. Não haja nem aflição, nem lágrimas! [...] Ide para as vossa casas, fazei uma boa refeição, tomai bebidas doces e reparti com aqueles que nada tem pronto; porque este dia é um dia de festa consagrado ao nosso Senhor; não haja tristeza, porque a alegria do Senhor será a vossa força! (Ne 8,9ss).
A lei, seja ela qual for, só tem sentido se favorecer a resolução dos problemas concretos e se ajudar o homem a ser livre e feliz sem fazer distinção nem discriminação de qualquer espécie.
Conscientes de que o dia consagrado ao Senhor é para nós o domingo, prestemos atenção aos gestos e palavras de Jesus para as reproduzirmos na nossa vida diária, na relação com os irmãos e na relação com Deus, tanto na vida familiar como social e comunitária, para que ninguém fique escondido na sombra e impedido de viver e participar na comunhão fraterna. Para que os injustiçados encontrem quem os defenda e as injustiças sejam denunciadas e trazidas para a luz do dia a fim de que todos as vejam.
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