O Ser humano dividido entre dois reinos

 


Lisboa, 🇵🇹 imagem de @alex.asa.77


Estou aqui e preciso de ti

Corre a brisa suave da manhã em dia de primavera. Há passos inquietos no jardim. Uma voz quente e doce sussurra palavras encantadas de desejos nunca sonhados: “Anda ver o mar”. Sereias de mil cores brincam nas ondas do céu e do mar, dizendo umas às outras: “Se quiseres podes ser Deus”. Fogem-me os pés na ilusão escorregadia da mentira. O dia escurece, o silêncio impõe-se, lá longe uma pequena esperança. Do profundo abismo chamo por ti gritando: “estou aqui e preciso de ti”.

 

“Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta há de atingir-te na cabeça, e tu a atingirás no calcanhar” (Gn 3,9-15). É bom o desejo de sermos como Deus, porque ele nos criou à sua imagem e semelhança, O erro está em querermos tirar o lugar a Deus e pior, pensarmos que Deus é o autor do mal e quer o nosso mal, quando ele nos criou por amor.

 

“Das profundezas do desespero, Senhor, clamo a ti. Escuta minha voz, ó Senhor; dá ouvidos à minha oração” (Sl 130:1-2). O pecado faz o salmista sentir a sua vida sepultada na angústia, mergulhada no abismo profundo, de onde apenas pode sair a sua voz. Entre o fundo abismo e o céu há uma grande distância e o salmista espera que a sua voz seja escutada por Deus, porque só ele o pode salvar.

 

“Por isso, nunca desistimos. Ainda que nosso exterior esteja morrendo, nosso interior está sendo renovado a cada dia” (2Co 4,13 -5,1). Paulo experimentou muitas adversidades desde o dia em que se encontrou com Jesus no caminho de Damasco. Apesar disso não desanima porque está convencido de que o evangelho que anuncia e no qual crê está assente na certeza da ressurreição e, por isso, aguarda a participação na glória de Deus.

 

“Um reino dividido internamente será destruído” (Mc 3,20-35). Não reconhecer que Deus é bom e tudo o que faz é por amor, é um pecado que não tem perdão porque subverte a verdade sobre Deus e o coloca no papel do demônio. Jesus adverte contra esta atitude chamando-nos a reconhecer que ele é mais forte que Satanás e vem para nos libertar do domínio do mal, para pertencermos à sua família como filhos amados do Pai.

 

Com a 1ª leitura (Gn 3,9-15) e com o salmo (130) responsorial a liturgia do 10º Domingo do Tempo Comum quer orientar nossa reflexão para a parte essencial do evangelho: aquela que fala do choque entre dois reinos, da luta mortal e da vitória do “mais forte”.

 

O trecho que se lê como primeira leitura deste domingo surge, pois, na sequência da infidelidade do homem e da mulher em relação ao mandamento divino “não comas da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás” (Gn 2,17). O resultado final, da mentira da serpente e da sedução do homem e da mulher, desejosos de serem como Deus e decidirem por eles mesmos o que é bem e mal, é a tomada de consciência de que perderam tudo e não ganharam nada. Homem e mulher estão nus. Não só não se tornaram como Deus, como perderam a harmonia que viviam entre eles, com os animais, com a natureza e com Deus. A única coisa que conquistaram com a desobediência foi o medo, medo de se apresentarem diante de Deus, “tive medo e escondi-me”.

 

O salmista experimenta-se, em relação a Deus, como alguém que está no fundo do abismo “do profundo abismo chamo por vós, Senhor”. Deus está lá no alto, distância que o salmista só pode vencer com a voz, “ouve a minha prece”, “a voz da minha súplica”. O salmista confia que é escutado “estejam teus ouvidos atentos”. A distância entre o salmista e o Senhor foi causada pelo pecado, os nossos e os de Israel, “se tiverdes em conta os nossos pecados”, “Ele há de libertar Israel de todas as suas faltas”. Esta distância é contrária à aliança entre Deus e o seu povo. A aliança foi rompida pela infidelidade, mas o Senhor pode restabelecer a aliança mediante o perdão “em Vós está o perdão”. O salmista confia que, vai ser escutado porque é grande a sua confiança e vigilância. Ele espera “mais do que as sentinelas pela aurora”, “confia na sua palavra” e sabe que no Senhor “está a misericórdia e abundante redenção”.

 

O evangelho (Mc 3,20-35) revela que a pessoa de Jesus se tornou incompreensível tanto para os da sua família como para os escribas de Jerusalém. Os seus familiares atribuem as suas atitudes ao fato de estar fora de si, enquanto que os escribas se atrevem a dizer que ele fez um pacto com o demônio. Jesus não perde tempo com quem lhe chama louco, mas não pode deixar passar em branco a crítica dos escribas porque põem em causa o Espírito Santo que o anima.

 

Jesus dispõe-se, então, a ensinar para lhes dar a oportunidade de reverem a sua posição. Começa com um argumento lógico. Se num reino ou numa casa as pessoas estão umas contra as outras, são facilmente vencidas pelos adversários. Se o demônio também está dividido, então não vai conseguir manter-se por muito tempo. Por outro lado, Jesus, servindo-se de outra parábola, recorda que um homem forte e bem armado na sua casa, este homem forte é o demônio, só pode ser vencido se for amarrado por um homem mais forte, que é Jesus. No início do evangelho de Marcos, João Batista diz que “depois de mim vai chegar outro que é mais forte do que eu” (Mc 1,7) e que logo a seguir vence as tentações do diabo no deserto. No capítulo 5 vamos encontrar um demônio que “ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com correntes… ninguém era capaz de o dominar” (Mc 5,3-4) e Jesus expulsou-o porque é mais forte.

 

De seguida, Jesus adverte que, permanecer com a atitude subversiva face à bondade de Deus, é um pecado que não tem perdão. A calúnia dos escribas sobre Jesus é uma blasfêmia contra o Espírito Santo, porque o Espírito de Deus que está em Jesus é amor e eles querem subverter, como fez a serpente com Adão e Eva, fazendo-os crer que Deus não era tão bom como parecia. Este pecado, não tem perdão, mesmo sabendo nós que Deus está sempre disposto a perdoar, ao ponto de perdoar até àqueles que matam o seu filho. Mas não pode perdoar àqueles que não o querem reconhecer como amor e lhe atribuem a origem do mal de que Satanás é símbolo. Só os que são da sua família é que podem conhecer quem é Jesus de verdade e estes são os que fazem a vontade do Pai.

 

O evangelho é um anúncio dramático como poucos: ele nos conduz, com efeito, ao coração do maior e mais universal drama da humanidade, que se chama o mal. A origem daquele drama é descrita na 1ª leitura. O homem é um ser tumultuado: tumultuado em si mesmo (envergonha-se da sua nudez), tumultuado em relação à mulher (Adão e Eva, em vez de se defender, acusam-se mutuamente, e se envergonham um do outro), tumultuado em relação ao seu Deus (foge e se esconde dele).

 

Tudo começou no momento em que Adão e Eva aproximaram-se da serpente, seduzidos pela ideia de experimentar uma nova liberdade, e caíram assim sob o domínio do “homem forte”. Fizeram como a criança que, para testar o quanto seus pais a deixam livre, sobe no parapeito da janela, e ameaça jogar-se abaixo, até que, tomada pela vertigem, cai no abismo de verdade. Estas palavras de Satanás: Conhecedores do bem e do mal (Gn 3,5), lembram outra frase dele mesmo: Se és Filho de Deus, lança-te abaixo (Mt 4,6), isto é: submete-te à prova, desafia a Deus!

 

A partir daquele dia, o ser humano está dividido entre dois reinos: aliás, é ele mesmo “um reino dividido em si mesmo”. Ele está sendo disputado por dois pretendentes; duas exigências lutam em seu coração: as de Satanás e as de Deus. Ele não faz o que quer, mas o que não quer (cf Rm 7); é um infeliz. Metade da Bíblia é composta que sai deste infeliz, é “palavra de homem”, é um gemido, como o grito ouvido no salmo responsorial: Das profundezas eu clamo a vós, Senhor.

 

Quem tentou, ao longo dos séculos – e foram religiões inteiras, ou grandes sistemas filosóficos – convencer o homem de que sua existência é naturalmente linear, serena e sem drama e de que somente a sociedade ou as classes sociais são a causa de seus males o enganou: “Nenhuma religião, exceto a nossa, ensinou que o homem nasce do pecado, nenhuma seita filosófica nunca escreveu isso: nenhuma, portanto, disse a verdade!” (Pascal).

 

A melhor tática de Satanás sempre foi a de fazer acreditar que ele não existe. Ele é a dissimulação personificada, aquele que age às escondidas, que não fala, mas sussurra; e é por isso, talvez, que a Bíblia pensou no símbolo da serpente (basta pensar como se insinua em nossos pensamentos e em nossas ações, mesmo nas melhores). Quando consegue convencer um povo ou uma civilização (como conseguiu fazer na civilização clássica pagã), de que o ser humano é sadio, belo, soberanamente livre e autossuficiente, de que a paz olímpica é feita para ele, então alcançou tudo o que quer: subtraiu o ser humano, uma vez mais, a seu inimigo, Deus.

 

Esta é a situação humana que está por trás. A Palavra de Deus, porém, não se restringe tanto a descrever uma situação quanto um acontecimento: precisamente a derrota do reino de Satanás. Tal derrota, prometida desde o início, (“Farei que haja inimizade entre você e a mulher, e entre a sua descendência e o descendente dela. Ele lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar” Gn 3,15), é infligida agora por Jesus Cristo. Este é o sentido que transparece nas palavras do evangelho: Satanás está para acabar; ele é amarrado e sua casa, isto é, seu reino, é saqueado por alguém mais forte do que ele.

 

Poucos trechos do Evangelho conseguem como este dar o sentido da autoridade de Jesus, a convicção de que com ele a história humana tivesse chegado à conclusão final e à sua verdadeira “crise”. É preciso lembrar as palavras que se leem no evangelho de João: Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo (Jo 12,31).

 

A mensagem de hoje é uma “mensagem para a nossa fé”; ela proclama ao nosso coração de cristãos que acabou nossa escravidão (cf Is 40,2), e que não somos mais prisioneiros da casa do homem forte; que alguém veio, abriu as portas e nos conduziu para fora. Tudo isto ele levou a efeito em seu mistério pascal, quando entrou de verdade na casa do forte – nos infernos – e libertou “os espíritos em prisão” (1Pe 3,19). Esse acontecimento se verificou para nós no batismo, quando escapamos de Satanás e de suas seduções, para aderir a Cristo, e passamos “do poder das trevas para o Reino de seu Filho amado” (Cl 1,13; cf também 1Pe 2,9).

 

Mas a reflexão de hoje é também uma mensagem para a vida. A batalha decisiva entre os dois reinos aconteceu com Cristo, mas a guerra não acabou; a serpente continua a armar ciladas ao calcanhar de sua linhagem, que é seu corpo, seus membros, nós! Expulso de nossa habitação no batismo, o espírito imundo procura continuamente reentrar com sete outros espíritos piores, e tornar assim nossa condição atual mais lastimável do que a primeira (cf Mt 12,43-45).

 

O homem vive permanentemente uma luta contra o mal, seja ele físico, moral, ou social. E interroga-se sobre a origem do mal e de que modo pode ele ser vencido. A conclusão do texto revela que o mal não está em Deus, porque Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, a partir do seu amor e quer que o homem seja como ele, mas não pelo caminho indicado pela serpente. O mal está fora do homem e trava com ele uma luta permanente para o afastar de Deus e impedir que obedeça aos mandamentos divinos que representam a vida e a felicidade do homem.

 

O pecado deixa o homem despido de si mesmo, da sua dignidade e incapaz de se apresentar diante de Deus. Pelo pecado a única conquista é o medo e o vazio, o abismo onde a distância entre o homem e Deus se adensa tornando impossível a aproximação: “onde estás?”, “escondi-me!”.

 

Portanto, este tempo é para nós de vigilância e decisão. A diferença entre agora e antes de Cristo é que agora nós podemos vencer, ou melhor, “vencer de virada” (cf Rm 8,37); antes – sob a Lei – não! Mas para vencer é preciso suar, é preciso participar na luta e na vitória de Jesus, tomando nossa cruz no dia a dia e seguindo-o (cf Lc 9,23; Mt 16,24; Mc 8,34). Devemos completar o que falta à vitória de Jesus. Na 2ª leitura (2Co 4,13 -5,1), São Paulo nos encorajou a seguir esta estrada, lembrando-nos de que a nossa presente tribulação, momentânea e ligeira, nos proporciona um peso eterno de glória incomensurável. Não fiquemos nas generalidades; procuremos inventar ocasiões de vitória. Hoje mesmo! Melhor, procuremos descobri-las porque tais ocasiões já existem em nosso dia a dia e se chamam caridade, paciência, humildade, tolerância ...

 

Agora nos espera um grande encontro: voltando de sua vitória sobre o “forte”, vem a nós “o mais forte”; vem o nosso Redentor. Vem reparar nossas perdas e as feridas da luta cotidiana; vem alimentar nossa fé e nossa coragem. Nós não dizemos mais, neste momento, “Das profundezas clamo a vós, Senhor”, mas dizemos: “O Senhor é a minha rocha e minha fortaleza, é ele, o meu Deus, que me liberta e me ajuda”.

 

Senhor, tu sabes que a voz da serpente se faz ouvir em mim querendo convencer-me que, sem ti, posso ir mais longe e mais alto do que seguindo a tua voz, os teus passos e nos teus caminhos. Sei que a voz da serpente enlouquece a minha vontade, mas também sei que a tua voz me orienta na verdade, na alegria, na liberdade de filho, no amor que me salva de todos os abismos. Por isso, chamo por ti na esperança de que os teus ouvidos estejam atentos à voz da minha súplica.

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