Fé ou Aparência? Resgatando o Evangelho Autêntico em um Mundo de Superficialidades
A realidade da Igreja contemporânea apresenta desafios significativos no que diz respeito à fidelidade ao Evangelho e à formação de discípulos autênticos, especialmente em um cenário em que o ambiente cultural, fortemente influenciado pelo secularismo e pelo individualismo, molda a prática religiosa. Um dos aspectos mais preocupantes é o impacto do modelo de igreja popularizado por movimentos como o de Willow Creek, que enfatiza uma abordagem esteticamente atraente, voltada para o crescimento numérico, mas muitas vezes esvaziada de profundidade teológica e espiritual. Esse modelo, fortemente marcado por uma teologia deísta, moralista e terapêutica, tem sido amplamente adotado em diversas comunidades cristãs, promovendo práticas que colocam em risco o anúncio do genuíno Evangelho de Cristo.
A teologia deísta subjacente a esse modelo reduz Deus a uma figura distante, que observa passivamente a vida humana, mas não intervém de forma ativa e pessoal na história. Com isso, perde-se a centralidade da graça e da ação divina na salvação e santificação dos fiéis. Além disso, o moralismo transforma a fé em um conjunto de regras e normas comportamentais, deslocando o foco da relação viva com Deus para uma adesão superficial a um código ético. Por fim, a abordagem terapêutica, que prioriza o bem-estar emocional e psicológico, reduz a mensagem do Evangelho a um recurso para a realização pessoal, afastando-se do chamado à conversão, ao arrependimento e à santidade.
O que é a fé
A fé é um ato da razão, movido pela vontade e iluminado pela graça.
Na tradição católica, especialmente segundo Tomás de Aquino, a fé é compreendida como um ato racional e volitivo, iluminado pela graça de Deus. Essa visão distingue claramente entre a **fé objetiva** e a **fé subjetiva**, dois aspectos que determinam o entendimento e a prática da fé na vida cristã.
Nesse contexto, corre-se o risco de que a fé objetiva – os conteúdos da revelação divina, transmitidos pela Tradição e pelas Escrituras – seja minimizada em favor de uma fé subjetiva diluída, marcada mais pela experiência individual do que pela verdade universal. A visão tomista da fé, que a entende como um ato racional e volitivo, iluminado pela graça, mostra-se particularmente relevante para corrigir os desvios contemporâneos, uma vez que ressalta a necessidade de uma adesão à verdade objetiva revelada por Deus e ao mesmo tempo exige uma resposta pessoal e livre, movida pela vontade e sustentada pela graça divina.
No livro “A satisfação de todo desejo”, de Ralph Martin, no capítulo III - O Despertar e a Conversão, explica o processo de salvação e santificação. Para alguns não há uma experiência marcante no sentido de despertar ou conversão de uma vida afastada de Deus. Cita exemplos como Santa Teresa de Lisieux e São Francisco de Sales. Foram abençoados com um ambiente familiar de fé e instrução sólida e simplesmente amadureceram. Em contrapartida existem outros que, embora levem uma vida cristã em certa medida, geralmente o fazem sem fervor nem comprometimento significativo. Sabemos que a tepidez e mornidão não é agradável ao Senhor (Ap 3,15-16). Acabam servindo a dois senhores e ficam “cegas” ou inconscientes do que está envolvido o chamado à santidade. Apresenta Santa Teresa D’Ávila como um exemplo de mornidão no início de sua vida. Há também pessoas vivendo longe do Senhor que precisam de mais que um despertar. Podem estar vivendo nas profundezas da descrença e em absoluta sujeição a pecados sérios como o exemplo de Santo Agostinho. Talvez jamais tenham ouvido o Evangelho e sido batizadas não iniciando a jornada espiritual.
Assim Ralph Martin explica que começos e recomeços são importantes na vida espiritual. Comenta e ensina a partir do exemplo de Santa Teresa D’Ávila; em seus escritos ela concluiu que havia se acomodado em uma rotina de muitas concessões à mundanidade e à vaidade, o que bloqueava seu progresso espiritual. Testemunhou seu processo de despertamento e santificação.
Santa Teresa d'Ávila é um exemplo de alguém que experimentou um processo profundo de despertar e conversão, depois de ter vivido um período inicial de mornidão espiritual. Sua experiência revela importantes obstáculos que podem impedir o progresso espiritual de qualquer pessoa, e Ralph Martin destaca quatro aspectos principais: descaso com relação ao pecado, falta de prudência ao evitar ocasiões de pecado, auto-suficiência e a desvalorização das graças de Deus.
### **1. O descaso com relação ao pecado**
Santa Teresa reconheceu que, durante o início de sua vida religiosa, ela não tinha uma postura séria em relação ao pecado. Esse descaso impedia que ela visse o impacto das pequenas transgressões em sua vida espiritual. Ela mesma escreveu que fazia "muitas concessões à mundanidade e à vaidade", o que a mantinha em um estado de tibieza. Essa atitude em relação ao pecado bloqueia o crescimento na santidade porque, ao não tratarmos o pecado com o devido peso, permitimos que ele se infiltre em nossas vidas, prejudicando nosso relacionamento com Deus e limitando nossa abertura à Sua graça.
### **2. Não evitar as iminentes ocasiões de pecado**
Outro obstáculo apontado foi a falta de prudência de Teresa em evitar ocasiões de pecado. Ela se mantinha em ambientes ou em relações que favoreciam distrações espirituais e mundanas. Essa falta de vigilância enfraqueceu sua determinação em seguir um caminho mais profundo com Deus. Santa Teresa mesma admitiu que frequentava as visitas sociais e mantinha relações que alimentavam sua vaidade, o que a fazia cair repetidamente em hábitos que distanciavam seu coração de Deus. Este comportamento demonstra que, mesmo em meio a práticas religiosas, não evitar ocasiões de pecado nos mantém presos a uma vida superficial e espiritualmente estagnada.
### **3. Auto-suficiência**
Santa Teresa também percebeu que sua auto-suficiência era um grande bloqueio em seu progresso espiritual. Ao confiar em suas próprias forças e méritos, ela se fechava à ação transformadora de Deus. A auto-suficiência é uma armadilha que nos faz acreditar que podemos alcançar a santidade ou a felicidade por nossos próprios meios, ignorando nossa dependência radical da graça de Deus. Santa Teresa testemunhou que, em seu processo de conversão, foi necessária uma profunda humildade para reconhecer sua fragilidade e a necessidade de se abandonar completamente à misericórdia divina.
### **4. Não dar valor às graças de Deus**
Santa Teresa também identificou que, por muitos anos, ela não valorizava devidamente as graças que recebia de Deus. Embora tivesse experiências espirituais e momentos de inspiração divina, ela não correspondia plenamente a essas graças, deixando que as distrações do mundo falassem mais alto. Essa atitude a impedia de progredir em sua relação com Deus, pois ela não cooperava com o que o Senhor estava lhe oferecendo. Ralph Martin observa que a santidade exige uma resposta ativa às graças recebidas – valorizá-las, aceitá-las e permitir que transformem nossas vidas.
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Santa Teresa d’Ávila nos ensina, por meio de sua própria vida, que o progresso espiritual exige sinceridade e vigilância. O descaso com o pecado, a exposição a ocasiões de pecado, a confiança exagerada em si mesmo e a desvalorização das graças de Deus criam barreiras entre nós e o chamado à santidade. Para superar esses obstáculos, ela sublinha a necessidade de humildade, disciplina espiritual e uma resposta generosa às graças de Deus. O despertar e a conversão de Teresa mostram que é possível romper com a mornidão espiritual e trilhar um caminho de santificação, desde que haja abertura e cooperação com a ação de Deus.
No mundo em que vivemos, permeado pelo relativismo muitos vivendo nas profundezas da descrença e em absoluta sujeição a pecados sérios estão imersos na mesma situação como de Santo Agostinho.
No livro *“A Satisfação de Todo Desejo”*, Ralph Martin explora, no capítulo III - a dinâmica da conversão pelo testemunho descrito em “Confissões” de Santo Agostinho; revelam a profunda agonia espiritual e a dinâmica de sua luta contra o pecado e a escravidão dos maus hábitos. A partir desse testemunho, o autor também traz os ensinamentos de São Bernardo de Claraval, que ajudam a identificar o que muitas vezes impede a conversão: a sujeição ao hábito do pecado.
### **O Testemunho de Santo Agostinho**
Santo Agostinho, em suas *Confissões*, retrata uma batalha interior marcada pela tensão entre seu desejo de se arrepender e a resistência em abandonar os pecados aos quais estava profundamente apegado. Ele descreve o poder destrutivo do hábito do pecado, que não apenas prende a alma, mas a faz desejar aquilo que a afasta de Deus. Agostinho reconhece que essa escravidão ao pecado foi resultado de suas próprias decisões: “A lei do pecado é a violência do hábito que arrasta para baixo e aprisiona até mesmo a mente relutante”. Essa citação reflete sua experiência de sentir-se impotente para romper com os vícios que ele mesmo cultivara ao longo dos anos.
Um momento crucial no processo de conversão de Agostinho foi a influência da Palavra de Deus, especialmente quando, num momento de desespero, ele ouviu uma voz dizendo: *"Toma e lê"*. Ao abrir as Escrituras, encontrou uma passagem que lhe indicava diretamente o abandono do pecado e a entrega a Deus (Rm 13,13-14). Esse evento simboliza a ação misericordiosa de Deus, que usa a Palavra como um meio poderoso de libertação. Além disso, Agostinho foi influenciado pelas orações e o exemplo de sua mãe, Santa Mônica, pela pregação de Santo Ambrósio e por desilusões com os prazeres mundanos. Esses elementos se somaram à sua decisão de finalmente entregar sua vida a Deus, rompendo com os grilhões do pecado e entrando em um novo caminho de santidade.
### **O processo de Escravidão ao Pecado Segundo São Bernardo de Claraval**
O santo observou como uma imagem incorreta de Deus pode afastar alguém da fé e da conversão:
“Em minha opinião, todos aqueles que não tem conhecimento de Deus são os que recusam a buscá-lo. Estou certo de que se recusam porque imaginam que esse Deus bondoso seja duro e severo, que esse Deus misericordioso seja insensível e inflexível, que esse Deus amoroso seja cruel e opressor. É assim que o mal engana a si mesmo, fazendo de Deus uma imagem que não o representa.”
São Bernardo de Claraval prossegue, refutando falsas concepções de Deus que impedem as pessoas de se renderem a Ele:
“De que tendes medo, homens de pouca fé? De que Ele não vos perdoará os pecados? Mas, com suas próprias mãos, ele os pregou na cruz. Do fato de estardes habituados à vida fácil e serdes exigentes em vossos gostos? Mas Ele conhece nossa fraqueza. De que um prolongado hábito de pecar vos prenda, como uma cadeia? Mas o Senhor solta os grilhões dos prisioneiros. Ou talvez de que, furioso por causa da enormidade e frequência dos vossos pecados, e demore a estender-vos a mão? Mas, onde sobejava o pecado, a graça tornava-se transbordante. Estais preocupados com roupas e alimentos, e com necessidades físicas, e por isso hesitais em abrir mão de vossas posses? Mas Ele sabe que precisais de todas essas coisas. Que mais poder desejar? Que mais pode impedir-vos de seguir o caminho de salvação?”
O santo complementa a reflexão sobre a conversão ao destacar o papel central dos maus hábitos na resistência do ser humano à graça divina. Ele ensina que o pecado se torna um tirano quando o hábito é cultivado, pois o pecado habitual não apenas afeta as ações, mas também obscurece a mente e endurece o coração. Para São Bernardo, a alma, quando sujeita ao hábito do pecado, perde a liberdade de responder à graça, porque já está profundamente enraizada em um comportamento destrutivo.
Ele enfatiza que o verdadeiro obstáculo à conversão é o *apego desordenado* às coisas mundanas e aos prazeres passageiros, que cegam a alma para os bens superiores e eternos. São Bernardo insiste que, para superar essa escravidão, é preciso um movimento de decisão e abertura à graça de Deus, que age por meio de circunstâncias e instrumentos providenciais. Assim como no caso de Santo Agostinho, Bernardo nos ensina que a conversão não é apenas um despertar intelectual, mas uma transformação profunda que envolve renúncia, arrependimento e abertura à ação divina.
### **Os Meios Providenciais de Deus**
Ralph Martin destaca que a conversão de Santo Agostinho foi conduzida por vários meios providenciais pelos quais Deus age:
1. **Leitura de Livros e Escrituras**: A Palavra de Deus foi fundamental no despertar de Agostinho. A leitura de passagens específicas trouxe luz e clareza ao seu dilema espiritual.
2. **Encontros Providenciais**: O contato com Santo Ambrósio e outros cristãos fervorosos foi um exemplo inspirador para Agostinho.
3. **Desilusões Mundanas**: Agostinho, apesar de ter experimentado prazeres e honras mundanas, percebeu que eles não traziam a paz verdadeira, mas um vazio.
4. **Orações de Intercessão**: Santa Mônica, sua mãe, orou incansavelmente por sua conversão, sendo um canal da graça de Deus em sua vida.
5. **A Decisão Pessoal**: Apesar de todos os estímulos externos, a conversão de Agostinho só foi possível porque ele finalmente tomou a decisão de se abrir à graça de Deus e renunciar ao pecado.
6. **O Poder do Exemplo**: O testemunho de vidas santas, como as de Santo Ambrósio e outros cristãos, foi um fator decisivo para Agostinho.
### **Lições para Nós**
O testemunho de Santo Agostinho e os ensinamentos de São Bernardo nos lembram que a conversão é tanto um processo interior quanto exterior. Ela envolve:
1. Reconhecer a gravidade do pecado e a necessidade de abandoná-lo.
2. Lutar contra os maus hábitos, que nos mantêm presos em ciclos destrutivos.
3. Valorizar os meios providenciais de Deus, como a oração, os sacramentos, a leitura da Palavra e o exemplo de outros.
4. Abrir-se à ação de Deus, que é paciente, sábio e misericordioso em nos guiar à liberdade e à paz.
A conversão, portanto, não é apenas um momento pontual, mas uma jornada contínua que exige humildade, perseverança e a decisão de corresponder à graça que Deus oferece. Agostinho e Bernardo nos ensinam que, com a ajuda divina, é possível romper as correntes do pecado e trilhar o caminho da santidade.
Concluímos essa reflexão destacando a supremacia da graça; é um conceito central na teologia cristã que reconhece que toda obra de santificação e salvação é fundamentalmente fruto da ação de Deus. São João Paulo II, em sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (NMI), no número 38, oferece uma profunda reflexão sobre essa verdade. Ele afirma:
“Existe uma tentação que atormenta constantemente toda jornada espiritual e todo trabalho pastoral: a sedução de pensar que os resultados dependem de nossa capacidade de agir e planejar. É claro que Deus nos pede que realmente cooperemos com Sua graça e, portanto, convida-nos a investir todos os nossos recursos de inteligência e energia no serviço da causa do Reino. Porém, esquecer que “sem Cristo, nada podemos fazer” (cf João 15,5) é fatal. É a oração que nos firma nesta verdade. Ela constantemente nos recorda a supremacia de Cristo e, em união com Ele, a supremacia da vida interior e a santidade. Quando este princípio não é respeitado, é de espantar que planos pastorais não deem resultados e nos deixem com a sensação desalentadora de frustração?”
São João Paulo II ressalta que deixar de colocar o poder de Cristo e Sua graça em primeiro lugar e não lhe permitir expressar-se mediante nossa abertura à transformação interior através da oração é uma tentação constante. A natureza humana pecadora tem uma forte tendência a passar da confiança em Deus para autoconfiança.
Isso tem implicações práticas tanto na vida pessoal quanto na missão da Igreja.
- Primazia da Oração: Ele sublinha que a oração é essencial para reconhecer a primazia da graça. Antes de qualquer esforço, é preciso nos voltar a Deus, reconhecendo que Ele já está agindo na história e nas pessoas. A oração, portanto, não é apenas um complemento à ação pastoral, mas o fundamento que a sustenta.
- Perigo da Auto-suficiência: São João Paulo II alerta contra a tentação de confiar mais em estratégias, planos e esforços humanos do que na graça divina. Esse perigo de auto-suficiência pode levar à esterilidade espiritual, uma vez que a verdadeira transformação e santificação dependem de Deus.
- Cooperação com a Graça: Ainda que a graça de Deus seja soberana, ela não elimina a necessidade de nossa colaboração. O que São João Paulo II destaca é a ordem correta das coisas: o trabalho pastoral e os esforços humanos só têm valor e eficácia quando subordinados e enraizados na graça de Deus.
Essa declaração nos convida a um renovado abandono à providência divina, reconhecendo que todo progresso espiritual, toda missão frutífera e toda conversão é, em última análise, obra de Deus. A Igreja, seus pastores e fiéis são chamados a serem instrumentos dóceis da graça, confiando menos em suas próprias capacidades e mais no poder transformador de Deus.
Assim, a supremacia da graça é um chamado à humildade, à oração e à total dependência de Deus em todas as dimensões da vida cristã.
São Bernardo Claraval também nos alerta do constante perigo de transformar o supremo bem que recebemos - a graça gratuita de Deus - no mal supremo, o orgulho iludido que acredita que os dons de Deus são obra nossa ou são merecidos por nós: “O que é mais pernicioso que um servo usurpar a glória devida a seu senhor?”
Em um cenário onde a estética, a conveniência e a satisfação pessoal frequentemente se tornam mais importantes do que o compromisso com a verdade e o caminho da cruz, a Igreja é desafiada a retornar à sua missão original: o anúncio do Evangelho em sua integridade. Isso inclui a proclamação da centralidade da cruz, a exortação à conversão e ao discipulado, e o testemunho de uma vida transformada pela graça. Sem isso, corre-se o risco de perpetuar uma religião superficial que, embora atraente, não conduz à verdadeira salvação e santificação dos fiéis.
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