O Cristianismo Frente à Desordem do Coração e da Sociedade

 





**Introdução**


Vivemos tempos críticos, em que a sociedade se encontra sob a ameaça de forças destrutivas que deformam o caráter humano, desestruturam as famílias e corrompem as instituições religiosas e civis. O avanço do niilismo e do mundanismo, denunciados pelo Magistério da Igreja, revela-se como um dos grandes responsáveis por essa crise, que aprisiona o ser humano em um vazio existencial e relativiza valores fundamentais. Afastado da verdade transcendente, o homem moderno perde de vista sua vocação divina, trocando sua identidade de filho de Deus por ideologias que promovem o individualismo, o materialismo e a busca de prazeres fugazes.


A premissa cristã aponta para o coração desse drama: o ser humano, dotado de livre-arbítrio, é chamado a escolher entre a influência de uma cultura secularizada ou a luz transformadora do cristianismo. Essa escolha não é apenas uma questão de moralidade imediata, mas determina o destino eterno da alma, como destacado na **"Teologia do Corpo"** de São João Paulo II. A vida humana não é um acaso desprovido de propósito, mas uma jornada com um destino divino, marcada pela vocação à comunhão com Deus e com os outros.


No entanto, a realidade mostra que essa escolha é constantemente obscurecida pelas "seduções sensuais" e pela desordem interior. Conforme recorda São João da Cruz, o homem, por si só, não possui a força para superar as tentações que deformam sua alma e o afastam de seu Criador. Somente um amor maior – o amor de Deus – é capaz de libertá-lo de "amores menores e desproporcionados". É nesse contexto que a oração se apresenta como uma resposta fundamental à crise moderna, pois não se trata apenas de uma prática espiritual, mas de um relacionamento profundo com o Deus que nos ama e deseja restaurar em nós a plenitude de Sua imagem.


Contudo, como nos ensinam os santos, esse relacionamento exige esforço, tempo e atenção, assim como qualquer vínculo humano significativo. A oração, em sua essência, é o ato de direcionar o coração para Deus, permitindo que Sua graça ilumine a razão obscurecida pelo niilismo e aqueça a vontade paralisada pelo mundanismo. Nesse encontro, o homem recebe força para abandonar o pecado, reconstruir sua vida espiritual e redescobrir sua verdadeira identidade. 


Portanto, o cristianismo não apenas oferece uma resposta teórica ao niilismo (*) e ao mundanismo que assolam nossa era, mas também propõe um caminho de transformação radical, fundamentado na oração e na comunhão com Deus. Somente nessa relação profunda e vital é que encontraremos as respostas para os desafios atuais e a força para reconstruir aquilo que foi deformado e destruído: o caráter humano, as famílias e a própria Igreja.


(*) Negação de todo e qualquer princípio religioso, social e político


Diversos documentos da Igreja abordam, de forma direta ou indireta, o tema do **niilismo**, suas consequências, o mundanismo provocado por ele e o papel do cristianismo como resposta a esses desafios. Aqui estão alguns deles que tratam desse assunto de maneira significativa:


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### 1. **Encíclica *Evangelii Nuntiandi* (1975) – São Paulo VI**

   - Trata da necessidade da evangelização em uma sociedade secularizada e marcada pela falta de sentido.

   - Reflete sobre a perda dos valores transcendentais e a necessidade de o cristianismo dar um testemunho autêntico diante da "cultura do vazio".

   - **Citação relevante:**  

     *"O homem contemporâneo parece estar sempre à procura de alguma coisa: da liberdade, da felicidade, da verdade e da paz interior. E, no entanto, ele frequentemente se encontra mais perdido, como se o mundo tivesse deixado de lhe oferecer respostas profundas."*  

   - O documento aponta a importância do cristianismo em propor uma resposta integral à crise espiritual e cultural.


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### 2. **Carta Encíclica *Fides et Ratio* (1998) – São João Paulo II**

   - Reflete sobre o niilismo como uma crise de sentido causada pela rejeição da verdade transcendente e pela ditadura do relativismo.

   - Denuncia a ausência de um referencial absoluto, levando a um vazio existencial e ao mundanismo, onde o materialismo predomina.

   - **Citação relevante:**  

     *"O niilismo é uma das expressões mais radicalizadas do desespero humano, fruto da perda da esperança diante de uma cultura que rejeita a transcendência."*  

   - Enfatiza que a fé e a razão devem caminhar juntas para ajudar o homem moderno a reencontrar o sentido da existência.


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### 3. **Encíclica *Redemptor Hominis* (1979) – São João Paulo II**

   - Aborda a crise existencial do homem moderno diante da secularização, do materialismo e do consumismo, que são manifestações do niilismo.

   - Coloca Cristo como resposta essencial à busca de sentido.

   - **Citação relevante:**  

     *"O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível, a sua vida é destituída de sentido, se o amor (de Cristo) não lhe for revelado."*  

   - Destaca o papel da Igreja em testemunhar o amor redentor de Cristo.


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### 4. **Carta Apostólica *Novo Millennio Ineunte* (2001) – São João Paulo II**

   - Reflete sobre os desafios do mundo contemporâneo, incluindo o niilismo, e destaca a necessidade de uma nova evangelização.

   - Fala sobre como o cristianismo deve enfrentar a "cultura do vazio" com o testemunho da vida em Cristo.

   - **Citação relevante:**  

     *"Nos nossos dias, a humanidade parece ter perdido o sentido da vida e mergulhado num vazio que somente Cristo pode preencher."*


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### 5. **Exortação Apostólica *Evangelii Gaudium* (2013) – Papa Francisco**

   - Critica a cultura do descartável, o individualismo e o relativismo – características que refletem o niilismo moderno.

   - Ressalta o mundanismo que transforma os seres humanos em meros consumidores, desprovidos de profundidade espiritual.

   - **Citação relevante:**  

     *"Uma das causas desta situação consiste na relação que estabelecemos com o dinheiro, pois aceitamos pacificamente o seu predomínio sobre nós e as nossas sociedades."*  

   - Afirma que o cristianismo é chamado a ser um testemunho de alegria, esperança e plenitude em meio ao vazio existencial.


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### 6. **Carta Encíclica *Spe Salvi* (2007) – Bento XVI**

   - Explora o niilismo como a consequência de uma humanidade sem esperança transcendente, que se reduz ao materialismo e ao mundanismo.

   - Propõe a esperança cristã como resposta ao desespero niilista.

   - **Citação relevante:**  

     *"Quando falta a grande esperança – aquela que vai além do material –, tudo se desmorona e o homem fica perdido."*  

   - Enfatiza que a verdadeira redenção do homem só pode vir por meio de Cristo.


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### 7. **Carta Encíclica *Caritas in Veritate* (2009) – Bento XVI**

   - Analisa as raízes éticas e espirituais das crises modernas, incluindo o niilismo, o relativismo moral e a rejeição dos valores transcendentais.

   - Denuncia o mundanismo provocado pelo culto à técnica, ao consumo e à ausência de um horizonte espiritual.

   - **Citação relevante:**  

     *"O desenvolvimento humano integral pressupõe a abertura à vida transcendente e o reconhecimento de que o homem não é a medida de todas as coisas."*


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### 8. **Exortação Apostólica *Gaudete et Exsultate* (2018) – Papa Francisco**

   - Fala sobre o "mundanismo espiritual", uma forma de niilismo disfarçado dentro da própria vida cristã, que reduz a fé a uma formalidade sem vida interior.

   - **Citação relevante:**  

     *"O mundanismo espiritual é um niilismo disfarçado, que toma posse do coração e esconde-se por trás da aparência de religiosidade, mas está longe de Deus."*


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### 9. **Concílio Vaticano II – *Gaudium et Spes* (1965)**

   - Discute as grandes crises espirituais e culturais da modernidade e a necessidade de o cristianismo responder ao vazio de sentido causado pelo afastamento de Deus.

   - **Citação relevante:**  

     *"Sem o Criador, a criatura desaparece. [...] Quando Deus é esquecido, a própria criatura se torna incompreensível."*


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Esses documentos mostram como o Magistério da Igreja reflete profundamente sobre o impacto do niilismo, as consequências do mundanismo e o papel vital do cristianismo em oferecer esperança e sentido para uma sociedade que sofre de uma "crise de transcendência".





A Importância da Oração 



São João da Cruz (século XVI) afirmou que “as seduções sensuais são tão fortes e tão arraigadas em nossa natureza (desordenada) que nenhum esforço de renunciar a elas terá pleno êxito. É preciso que uma sedução maior, um amor maior, nos inflame afim de conseguirmos abandonar amores menores e desproporcionados”.


Ao encontrar satisfação e força nesse Amor, a alma terá a coragem e a constância para negar prontamente todos os demais apetites (irascíveis e concupiscíveis). 


“Quão fáceis, doces e deliciosos esses anseios pelo Noivo fazem parecer todas as provações e perigos dessa noite”. 


Uma das principais formas de nos abrirmos para que esse amor maior nos possua é a oração. Contudo, precisamos lembrar que, em sua essência, a vida espiritual não consiste em determinadas práticas de piedade e técnicas de oração, mas em um relacionamento. Trata-se de responder Àquele que nos criou e redimiu, que nos ama com amor maior que a morte, um amor que deseja ressuscitar-nos dos mortos. Relacionamentos humanos como amizade ou casamento requerem tempo, atenção e cuidado para que continuem e cresçam. O mesmo se dá em nosso relacionamento com Deus: somos chamados à união com Ele, mas precisamos responder. 


Assim, na conversão ou em um despertar mais profundo, além de abandonarmos o cometimento deliberado do pecado - que deforma a alma, bloqueia o relacionamento e ofende a Pessoa que sacrificou Sua vida por nós - temos de efetivamente construir o relacionamento com Ele, dando atenção Àquele que nos ama. A oração é, em sua essência, esse ato de dar atenção a Deus. 


Todos os santos falam da importância da oração:


“Como é grande o poder da oração. Digo a Deus, com muita simplicidade, tudo quanto desejo dizer, sem compor belas frases, e Ele sempre me entende. Para mim, a oração é um anseio do coração, é um mero relance dirigido ao céu, é um grito de gratidão  e amor durante a provação como durante a alegria; por fim, é algo grandioso, sobrenatural, que expande minha alma e me une a Jesus” (Santa Teresa de Lisieux, História de Uma Alma).


“Como a oração coloca nosso intelecto no esplendor da luz de Deus e expõe nossa vontade ao calor de seu amor celestial, nada além dela é capaz de purificar verdadeiramente nossa razão da ignorância e nossa vontade das afeições imorais. […] Eu vos aconselho especialmente a praticar a oração mental, a oração do coração e, sobretudo, aquela que tem por foco a vida e a paixão de nosso Senhor. Ao voltardes frequentemente vossos olhos para Ele em meditação, a vossa alma inteira ficará repleta dele. Vós aprendereis seus caminhos e moldareis vossas ações de acordo com as dele” (São Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota).


“Mas devo insistir que podemos somente ousar realizar qualquer dessas coisas (abandonar o pecado e voltar-se para Deus) pela graça, não pela natureza, nem mesmo pelo esforço. É a sabedoria que vence a maldade, não o esforço nem a natureza. E não é difícil encontrar razões para a esperança: a alma precisa recorrer à Palavra” (São Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico dos Cânticos).



Por isso, uma das principais coisas que devemos compreender com relação à jornada espiritual é que enfrentar provações e tentações é uma condição necessária para o avanco. “Precisamos passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus” (At 14,22).


Essas experiências não são agradáveis. Na verdade, elas costumam ser decididamente dolorosas. Não obstante, se reagirmos da maneira correta, elas podem levar à profunda paz da santidade (cf Hb 12,11).


Infelizmente, não saber como identificar tentações e provações e lidar com elas costuma gerar confusão e levar a decisões insensatas que nos impedem de avançar na jornada espiritual. 


Santa Teresa D’Ávila ensina que algumas das tentações tem sua origem principalmente em nossa própria natureza humana corrompida, com seus desejos caóticos inclinados ao pecado e cegos por causa dele; outras tem raízes na “sabedoria convencional” do mundo, que costuma ser inimiga dos caminhos de Deus; e outras ainda são instigadas pelos demônios. A santa descreve o diabo como uma “Lima silenciosa” que age sorrateiramente para conduzir-nos a decisões imprudente se prejudicar-nos. 


Avançar na vida espiritual significa estar cada vez mais livre da sujeição a tais influências e sujeitar-se cada vez mais ao Espírito de Deus. Além disso, entender o que acontece conosco é de grande serventia para nossa libertação. De fato, a verdade nos libertará.



**Conclusão**


Diante dos desafios que marcam a sociedade atual, fica claro que a jornada espiritual do ser humano não é isenta de provações, tentações e conflitos. Contudo, é precisamente nesse enfrentamento que se encontra a oportunidade de avançar em direção à verdadeira liberdade e plenitude, segundo o plano de Deus. A crise contemporânea – que deforma o caráter, desestrutura famílias e corrompe até mesmo as igrejas – não pode ser vista apenas como um colapso social e moral, mas como um reflexo profundo da rejeição à transcendência e ao chamado divino à santidade.


Como nos ensinam os santos e os documentos da Igreja, essas tribulações não são sinais de abandono, mas sim oportunidades de purificação e amadurecimento espiritual. É no fogo das provações que o cristão, pela graça de Deus, se liberta das desordens interiores, dos apelos sedutores do mundo e das armadilhas espirituais do maligno. Santa Teresa d’Ávila, com sua sabedoria prática, recorda-nos que o avanço na vida espiritual exige discernimento, vigilância e uma entrega cada vez mais profunda ao Espírito Santo.


No entanto, essa libertação não ocorre automaticamente. Exige esforço humano unido à graça divina, iluminado pela verdade e fortalecido pela oração. Como ensina o Evangelho, "a verdade nos libertará" (Jo 8,32), mas essa verdade precisa ser acolhida e vivida em meio às realidades concretas de nossa existência, mesmo que estas sejam marcadas pela dor e pelo sofrimento.


Portanto, diante de uma sociedade que promove o niilismo, o mundanismo e a relativização de valores, o cristianismo oferece não apenas uma resposta, mas um caminho transformador. Esse caminho, longe de ser fácil ou isento de desafios, é uma jornada de liberdade que conduz o homem a submeter-se ao Espírito de Deus, encontrando na união com Ele a força necessária para resistir às tentações, superar os sofrimentos e caminhar em direção à santidade. Ao final, é essa comunhão com Deus – vivida na oração, no discernimento e na busca pela verdade – que transforma o coração humano e restaura a ordem perdida, oferecendo à sociedade uma esperança renovada e um testemunho vivo de que é possível vencer a crise espiritual dos tempos modernos.

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