Como ser você mesmo?

Sugere-se que se formos nós mesmos seremos felizes, mas o problema é saber como ser “eu mesmo”. Isso significa seguir seus próprios projetos, suas crenças, a herança da sua cultura ou seus hormônios?

Esse é um dos bons frutos da sabedoria dos antigos. O homem não nasce “ele mesmo”. Pássaros nascem pássaros; não tem crises de identidade e jamais chegam ao momento no qual precisarão decidir se serão gatos, peixes, urubus ou águias. Mas com o homem é diferente. O pardal não precisa dizer sim a si mesmo, nem ganhar autoconhecimento para seguir sua natureza “pardálica” mas o homem precisa entender-se para ser. E identidade tem a ver com isso; “idêntico” é o que é perfeitamente igual. Identidade significa igualdade consigo mesmo, consistência. O problema do homem é que ele é capaz de perder a consistência, de não entender-se consigo e dividir-se.

Cada pessoa imagina a sua identidade como uma questão absolutamente pessoal, ligada às contingências de sua existência particular. Essa tendência oculta a maior fraqueza das busca pela identidade como é praticada e recomendada hoje: é que não é possível que eu, saiba “quem eu sou”, se eu não souber primeiro o que significa “ser humano".

Mais recentemente Zigmunt Bauman observou que “a natureza humana, uma vez vista como um duradouro legado da criação divina, foi lançada, junto com o resto da criação divina, no caldeirão. Ela não seria, e não mais poderia ser vista – como dada. Ao invés disso, ela foi transformada em uma tarefa, uma tarefa que cada homem e mulher não tem escolha senão encarar e realizar da melhor forma possível". Como se estivesse sob uma maldição pela afirmação libertária da modernidade, do homem individual como um ser absolutamente livre e autocriador, cada indivíduo precisa refundar-se e reinventar-se permanentemente na base do puro arbítrio, e não pode aceitar nenhuma definição de sua identidade que tenha origem externa, fora de sua vontade.

A Identidade, muito além da “Identidade”

Os cristãos afirmarão algumas coisas fundamentais sobre a identidade. Primeiro, que temos uma estrutura, e que o agir não tem “prioridade sobre o ser”; pelo contrário, o ser é a condição de possibilidade e o ar dentro do qual a liberdade bate as suas asas. E essa estrutura é inerentemente boa; tudo o que torna possível ao homem o ser homem é em si mesmo bom e além disso é dádiva de um Deus bom. Portanto a realização máxima da liberdade será o amor a essa estrutura boa, o sim do homem para Deus e, assim, para si mesmo.

Segundo, os cristãos dirão que o homem está em pecado, em revolta contra Deus, e isso significa que sua identidade sofreu uma ruptura. A igualdade do homem consigo mesmo era desde sua origem indireta; ela passa por Deus, pois o homem foi feito à imagem divina. Por isso a perda da identidade pessoal (em um sentido particular) e da identidade humana (em um sentido universal) são para nós um problema mais do que cultural ou psíquico; suas raízes são espirituais. O homem não quer ser o que é (ou o que foi feito para ser), e porque cegou-se espiritualmente, também não é capaz de ver o que deve ser. Ele está alienado de Deus e de si mesmo.

Terceiro, que a redenção da identidade está além braço humano. A maiêutica jamais será capaz de produzir o autoconhecimento e a integração pessoal. Pois o homem não é apenas ignorante, mas doente e perdido. Ele não tem a verdade dentro de si, pois é a mentira, é contradição; ele não precisa de um professor socrático, mas de um Salvador. Cada homem precisa olhar para além da busca da própria identidade, até porque ele não pode tentar ser consistente consigo mesmo agora, nas condições em que ele está. Se a forma foi corrompida pela liberdade, nem mesmo a mudança da vontade reconstruiria essa estrutura. Assim como a identidade humana lhe veio indiretamente, pela imago Dei, a redenção da identidade lhe virá indiretamente, como uma dádiva de reconciliação.

Temos pois três fundamentos: a identidade só existe quando a liberdade diz sim para a forma; a revolta humana introduziu a revolta da liberdade contra a forma, e sua deformação; e a identidade só pode ser recuperada olhando para além da nossa identidade, para a face de Jesus Cristo, com fé, esperança e amor. Pois nele a forma é perfeita, e a liberdade não é ódio, mas amor a Deus, a si mesmo e ao próximo.

“Seja você mesmo” pode ser verdade, em certos contextos, mas a expressão é inútil para descrever a riqueza da vocação humana. Não ensina a nossa intuição que isso pode não passar de uma sagração da mediocridade e, talvez, da perversão?

Nós cristãos não esperamos ser “nós mesmos”. Como poderíamos? “Nós sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2).

Fonte: Editora Ultimato - Guilherme de Carvalho

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