A Igreja não nasceu a 500 anos
Reflexões Teológicas, Históricas e Filosóficas sobre o Movimento Protestante
### Introdução
A Reforma Protestante marca um ponto de inflexão na história do cristianismo. Embora iniciada com o intuito de reformar a Igreja Católica, ela deu início a um processo de fragmentação que gerou consequências profundas, muitas vezes divergentes da intenção original de Martinho Lutero. Com o tempo, surgiram milhares de denominações protestantes, cada uma reivindicando a verdadeira interpretação do Evangelho. Essa divisão trouxe não só questões teológicas, mas também sociais, culturais e filosóficas. Este artigo examina as implicações teológicas e filosóficas desse movimento e a importância de reconhecer a continuidade da Igreja Cristã ao longo dos séculos.
Uma visão distorcida do movimento protestante
A Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero em 1517, é frequentemente vista como o momento em que uma nova “Igreja” surgiu. Contudo, muitos aspectos dessa interpretação são equivocados. Lutero, ao contrário do que muitos imaginam, não desejava criar uma nova Igreja ou promover divisões infindáveis, mas reformar o que ele percebia como erros e abusos dentro da Igreja Católica. Hoje, porém, o protestantismo está fragmentado em mais de 30 mil denominações, cada uma reivindicando a verdadeira interpretação do Evangelho, um fenômeno que Lutero jamais previu ou desejou.
Aspectos que muitos protestantes modernos consideram “romanos”, como o batismo infantil, a veneração a Maria, e a presença real de Cristo na Eucaristia, eram práticas aceitas por Lutero e ainda são mantidas em tradições luteranas. Além disso, doutrinas que hoje soam estranhas ao protestantismo contemporâneo, como o purgatório e o primado de Pedro, foram defendidas por reformadores antes de Lutero, como John Huss e John Wycliff. Este artigo analisa a complexa relação entre a Reforma e a tradição histórica da Igreja, a fim de esclarecer que a Igreja Cristã não nasceu com a Reforma, mas tem uma história rica e contínua que remonta aos tempos apostólicos.
### 1. Uma Visão Histórica da Reforma e a Continuidade da Tradição Cristã
Antes da Reforma Protestante, a Igreja Cristã já era um corpo unificado que transmitia a fé dos apóstolos através da Sagrada Escritura e da Tradição. O cristianismo, desde o seu nascimento, desenvolveu doutrinas e práticas que, por vezes, são rejeitadas ou reinterpretadas pelos protestantes modernos. Ao longo dos séculos, essas doutrinas foram refinadas e confirmadas em concílios ecumênicos, como o de Niceia (325 d.C.) e o de Calcedônia (451 d.C.), que definiram a ortodoxia cristã.
Lutero, por sua vez, ao protestar contra abusos na Igreja, não pretendia fundar uma nova igreja. Em vez disso, ele buscava uma reforma que pudesse purificar o que considerava falhas, especialmente em relação ao comércio de indulgências. Ele não rejeitava por completo a autoridade da Igreja ou a Tradição. De fato, Lutero manteve doutrinas que hoje são criticadas por muitos protestantes, como o batismo infantil e a presença real na Eucaristia, e, em certo grau, a veneração a Maria.
Entretanto, o que começou como um movimento de reforma logo se tornou uma divisão. Após Lutero, figuras como Calvino e Zwinglio tomaram rumos próprios, criando novas interpretações e estruturas eclesiásticas. Assim, o protestantismo fragmentou-se, e o que era uma Igreja unificada passou a ser dividido em diferentes denominações, cada uma alegando possuir a verdadeira compreensão do Evangelho.
### 2. O Princípio do “Sola Scriptura” e suas Implicações Filosóficas
Um dos pilares da Reforma foi o princípio do *Sola Scriptura*, ou “somente a Escritura”. Esse princípio defende que a Bíblia é a única fonte de autoridade para a fé e prática cristã, sem a necessidade de uma Tradição interpretativa. Essa ideia, embora pareça simplificar a fé cristã, levanta questões filosóficas profundas sobre a interpretação e a autoridade.
Em seu livro *“Not by Scripture Alone”* (*Não Somente Pelas Escrituras*), Robert A. Sungenis analisa as limitações do *Sola Scriptura*. Ele argumenta que a interpretação da Bíblia sem uma autoridade externa leva inevitavelmente à fragmentação, já que diferentes indivíduos e grupos interpretam a Bíblia de maneiras distintas. Essa situação explica, em parte, a proliferação de denominações protestantes, cada uma baseada em sua própria interpretação das Escrituras.
Sungenis também destaca que a Bíblia em si nunca ensina o *Sola Scriptura* — o conceito não é encontrado em nenhum lugar nas Escrituras e é, portanto, uma contradição interna do princípio em si. Do ponto de vista filosófico, a ideia de que a Escritura pode ser interpretada de forma privada e independente é problemático, pois leva a um subjetivismo teológico, onde cada pessoa pode ter uma interpretação diferente da verdade.
### 3. A Relação entre a Bíblia e a Tradição na Doutrina Católica
Para a Igreja Católica, a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura formam uma única fonte de revelação divina. Essa visão está enraizada na crença de que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, preserva e interpreta a verdade revelada. No início do cristianismo, a Tradição foi essencial, pois a Bíblia como conhecemos hoje não estava totalmente formada até o século IV, e a transmissão da fé dependia dos ensinamentos orais dos apóstolos e seus sucessores.
Na visão católica, a Tradição não é uma adição à Escritura, mas sua correta interpretação e complemento. Esse entendimento tem suas raízes na própria prática dos primeiros cristãos e na patrística. Os primeiros Padres da Igreja, como Santo Irineu e São Cipriano, enfatizavam a importância de seguir os ensinamentos dos apóstolos transmitidos pela Tradição. Para eles, a autoridade dos bispos, como sucessores dos apóstolos, era fundamental para preservar a fé cristã.
Sungenis argumenta que a insistência protestante no *Sola Scriptura* nega essa continuidade histórica e patristicamente defendida, o que é uma ruptura com a tradição cristã. Sem a Tradição e o Magistério (a autoridade da Igreja), a interpretação bíblica se torna vulnerável a subjetivismos, como é evidenciado pela multiplicidade de denominações protestantes.
### 4. A História do Sola Scriptura e as Divergências entre os Reformadores
Ainda que o *Sola Scriptura* seja um dos pilares do protestantismo, os próprios reformadores tinham visões diferentes sobre o princípio. Lutero, por exemplo, aceitava a Escritura como autoridade suprema, mas também atribuía importância a certos escritos patrísticos e conciliares. Ele acreditava que a Bíblia deveria ser interpretada em harmonia com a fé da Igreja, embora discordasse de alguns pontos da Tradição.
Calvino, por outro lado, defendia uma posição mais radical, rejeitando a Tradição eclesiástica e confiando exclusivamente na Bíblia. No entanto, essa abordagem gerou conflitos mesmo entre os reformadores. Zwinglio, por exemplo, discordava de Calvino sobre a natureza da Eucaristia, demonstrando que a rejeição da Tradição levou a interpretações divergentes desde o início do movimento reformista.
Sungenis, em seu livro, explica que o *Sola Scriptura* nunca foi um princípio unificado entre os reformadores e que sua aplicação prática levou a constantes divergências teológicas. A ausência de uma autoridade central para interpretar a Bíblia resultou em uma fragmentação que contrasta com a unidade doutrinária que a Igreja Católica tem mantido ao longo dos séculos.
### 5. A Visão Católica sobre Tradição e Escritura
Na teologia católica, a Escritura e a Tradição são vistas como complementares e inseparáveis. O Concílio de Trento (1545-1563), que foi a resposta da Igreja Católica à Reforma, reafirmou a importância da Tradição como um meio de preservar e interpretar a verdade revelada. Essa posição foi confirmada no Concílio Vaticano II, na constituição dogmática *Dei Verbum*, que afirma que a Escritura e a Tradição procedem de uma única fonte divina e devem ser entendidas em conjunto.
A Tradição, portanto, não é vista como uma invenção humana, mas como a transmissão viva da fé apostólica. A Igreja Católica ensina que o Magistério, o corpo de autoridade da Igreja, é guiado pelo Espírito Santo para interpretar corretamente as Escrituras e a Tradição, garantindo a continuidade e a fidelidade à fé original.
A Igreja Cristã não nasceu há 500 anos. A Reforma Protestante, apesar de seu impacto profundo, foi um movimento dentro de uma história de fé que se estende por mais de dois milênios. A fragmentação do protestantismo, impulsionada pelo *Sola Scriptura* e pela rejeição da Tradição, contrasta com a continuidade doutrinária que caracteriza a Igreja Católica, que preserva tanto a Escritura quanto a Tradição.
Homens como John Wycliff e John Huss, que criticaram a Igreja antes de Lutero, ainda reconheciam a importância do purgatório e do primado de Pedro, evidenciando que a rejeição dessas doutrinas é uma inovação relativamente recente. Assim, ao entender a história e as bases da fé cristã, somos chamados a reconhecer que a verdadeira Igreja é aquela que permanece fiel à Tradição dos apóstolos e preserva a unidade na diversidade dos tempos.
As consequências da fragmentação da Igreja
Abaixo, são analisados alguns aspectos que ilustram as consequências dessa fragmentação, como as "dinastias clericais" em igrejas modernas, o afastamento da cristandade de uma civilização baseada na verdade objetiva e a substituição do Tomismo pelo Nominalismo, especialmente no contexto protestante.
### 1. Dinastias Clericais em Movimentos Cristãos Modernos
Uma das características que surgiram em alguns movimentos cristãos modernos, especialmente nas igrejas pentecostais e carismáticas independentes, é o estabelecimento de dinastias clericais. Em muitos desses contextos, líderes carismáticos fundam igrejas centradas em torno de suas personalidades e, com o tempo, passam essa liderança para seus filhos ou parentes, criando uma espécie de "dinastia eclesiástica".
Esse fenômeno contrasta fortemente com a estrutura eclesial tradicional da Igreja Católica, onde a sucessão dos bispos é vista como uma continuidade apostólica independente de vínculos familiares, assegurando que a liderança da Igreja não se baseie em laços sanguíneos, mas na chamada e formação para o ministério. O surgimento de dinastias clericais dentro do protestantismo moderno reflete a fragmentação e a individualização do cristianismo contemporâneo, onde igrejas são frequentemente fundadas e geridas como instituições quase privadas.
Esse tipo de estrutura pode, eventualmente, desviar a igreja de seu propósito espiritual, à medida que a manutenção do poder dentro da família se torna uma prioridade. O problema se agrava em igrejas onde o fundador é uma figura fortemente carismática e exerce controle sobre doutrina e práticas religiosas. Esse cenário cria uma dependência da congregação em relação a essa figura central, que muitas vezes passa a ser vista quase como um intermediário direto com Deus. No longo prazo, essas dinastias clericais podem enfraquecer a mensagem original do Evangelho, diluindo a tradição cristã em favor de interesses pessoais e familiares.
### 2. Afastamento da Cristandade – Civilização Fundada na Verdade Objetiva
Uma das maiores perdas com a fragmentação protestante e o advento do secularismo moderno é o afastamento da civilização ocidental da Cristandade, que outrora foi alicerçada na verdade objetiva. Esse afastamento implica em uma ruptura com os fundamentos da civilização ocidental, os quais foram historicamente baseados em três pilares:
- **Direito Romano:** O Direito Romano forneceu uma estrutura jurídica universal que valorizava a justiça, a propriedade e a cidadania. Esses conceitos de justiça e ordem social foram fundamentais na construção de uma civilização que buscava o bem comum e a defesa dos direitos dos indivíduos. A fragmentação protestante e o secularismo subsequente diminuíram a influência do Direito Romano ao permitir que interpretações subjetivas e utilitaristas do direito ocupassem o lugar de um fundamento moral comum.
- **Filosofia Grega:** A filosofia grega, especialmente as contribuições de Sócrates, Platão e Aristóteles, buscava a verdade objetiva através da razão. Esses filósofos desenvolveram uma compreensão da ética, da virtude e da justiça, que influenciou profundamente a moral cristã. Com o desenvolvimento do ceticismo e do relativismo moderno, alimentado por interpretações subjetivas das Escrituras e pela negação da Tradição, essa busca pela verdade objetiva foi diluída, substituída por uma ênfase crescente na experiência pessoal e na percepção individual.
- **Moral Católica:** A moral cristã, enraizada nos ensinamentos de Cristo e na Tradição da Igreja, estabeleceu um conjunto de valores e normas éticas que moldaram a vida pessoal e social no Ocidente. O ensino moral católico abarca as virtudes cardeais — prudência, justiça, fortaleza e temperança — que foram sintetizadas pelos filósofos gregos e, mais tarde, aprofundadas por teólogos cristãos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. O afastamento do Protestantismo da moral católica e a proliferação de diferentes interpretações doutrinárias contribuíram para um enfraquecimento da ética objetiva e para uma visão utilitarista e hedonista da vida, mais focada no prazer pessoal do que no bem comum.
Esse afastamento dos fundamentos da Cristandade resultou em uma crise espiritual e moral na civilização ocidental. Sem uma base comum de verdade objetiva, a sociedade moderna se fragmenta em ideologias e valores conflitantes, cada um reivindicando seu próprio direito à verdade.
### 3. O Abandono do Tomismo e Escolástica e a Identificação com o Nominalismo
Outro ponto crucial que marca a transição do pensamento cristão no protestantismo foi o abandono do tomismo e da escolástica, substituídos pelo nominalismo. Enquanto São Tomás de Aquino e a tradição escolástica sustentavam que a verdade é objetiva e universal, o nominalismo, uma corrente filosófica promovida por Guilherme de Ockham, propõe que não existem essências universais, apenas nomes (nomina). O nominalismo sugere que os conceitos universais não têm realidade objetiva; são meras convenções linguísticas.
Essa visão nominalista foi uma influência importante na Reforma Protestante, especialmente em alguns reformadores que rejeitavam a escolástica como um sistema rígido e complexo. A adoção do nominalismo no lugar do tomismo e da escolástica resultou em várias consequências filosóficas e teológicas. O ceticismo filosófico relativo à verdade objetiva resultou, eventualmente, em um relativismo moral e em um enfraquecimento da teologia tradicional.
A partir do nominalismo, desdobra-se o empirismo e o sensualismo, onde somente o que pode ser experimentado pelos sentidos é considerado válido. Isso, por sua vez, levou ao desenvolvimento do ceticismo moderno, onde a verdade é relativizada e interpretada conforme o contexto. Esse cenário cria uma sociedade onde o relativismo é a norma e onde a autoridade da Igreja é rejeitada, já que cada indivíduo ou grupo pode reivindicar a interpretação "correta" das Escrituras e da realidade.
Esse processo leva a um perigo político e social: a busca por ordem em um contexto de relativismo moral pode levar ao surgimento do totalitarismo, seja sob a forma de um tirano individual ou de uma coletividade autoritária. Sem uma verdade objetiva comum, a sociedade se torna vulnerável à imposição de uma “ordem” arbitrária, que busca preencher o vazio deixado pela ausência de uma estrutura moral universal.
### Conclusão
A fragmentação protestante trouxe consequências duradouras que vão muito além das diferenças teológicas. A proliferação de denominações e a ausência de uma tradição comum contribuíram para o enfraquecimento da unidade cristã e para o afastamento de uma verdade objetiva que possa orientar a vida pessoal e social. As dinastias clericais, o afastamento dos fundamentos da cristandade e a adoção do nominalismo são apenas alguns dos fenômenos que surgiram como resultados dessa fragmentação.
Uma análise histórica e filosófica revela que a Igreja não nasceu há 500 anos. A tradição católica representa uma continuidade que preserva a verdade objetiva, sustentada pela Tradição e pelo Magistério. A história do cristianismo mostra que a fé não é apenas uma questão de interpretação pessoal, mas uma tradição rica e profunda, transmitida pelos apóstolos e desenvolvida ao longo de dois milênios. Em meio a uma sociedade fragmentada e relativista, a busca pela verdade objetiva e a unidade são imperativos para a redescoberta de uma cristandade comprometida com o bem comum e com a verdade que transcende o individualismo e o subjetivismo.
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