O discipulado revelado nas Bem-aventuranças

Quem quer que seja que escuta e que acolhe a palavra pode tornar-se um "discípulo". O discipulado é possível a quem quer que seja, vocação existe para todos.

Agora, ao contrário, Deus fala de um modo muito próximo, como de homem para homem. Agora Ele desce até o fundo dos seus sofrimentos; mesmo assim isso levará, e leva sempre de novo, os ouvintes que todavia julgam ser discípulos a dizer: "É duro este discurso, quem é que o pode escutar?" (Jo 6,60). Mesmo os novos bens do Senhor não são água com açúcar. O escândalo da cruz é para muitos ainda mais insuportável do que outrora os trovões do Sinai para os israelitas. Sim, eles tinham razão quando disseram:"... Deus não deve falar conosco, senão morremos" (Ex 20,19). Sem um "morrer", sem a destruição do que há de mais individual, não há comunhão com Deus nem redenção: a meditação sobre o batismo já o mostrou — o batismo não se deixa reduzir a um simples ritual.

"Erguendo os olhos para os seus discípulos, disse..." (Lc 6,20). Isto quer dizer duas coisas: o Sermão da Montanha dirige-se a toda a vastidão do mundo, presente e futuro, mas ele exige discipulado e só pode ser verdadeiramente entendido e vivido seguindo-se Jesus, caminhando-se com Ele.

Mas, então, o que são as bem-aventuranças? Elas se inserem, antes de mais nada, numa longa tradição da mensagem do Antigo Testamento, tal como a encontramos, por exemplo, no salmo 1 e no texto paralelo de Jeremias (Jer 17,7s): bem-aventurado o homem que confia no Senhor... São palavras que traduzem uma promessa, mas que servem ao mesmo tempo para o discernimento dos espíritos e assim se tornam instruções que indicam o caminho da sabedoria. A disposição que S. Lucas dá ao Sermão da Montanha elucida a direção especial das bem- aventuranças: "Erguendo os olhos para os seus discípulos...". Cada um dos elementos das bem-aventuranças resulta do olhar para os discípulos; descrevem o estado dos discípulos de Jesus: são pobres, famintos, que choram, odiados e perseguidos (Lc 6,20ss). Trata-se não só de qualificações práticas, mas também teológicas dos discípulos — daqueles que passaram a seguir Jesus e se tornaram a sua família.

De Jesus vem a felicidade para o meio da aflição.

Os paradoxos que Jesus apresenta nas bem-aventuranças exprimem a verdadeira situação dos crentes no mundo, descrita por S. Paulo repetidamente com base na sua experiência de vida e de sofrimento como apóstolo: "... considerados como impostores, ainda que sinceros; como desconhecidos, ainda que bem conhecidos; como agonizantes, embora estejamos com vida; como condenados, ainda que livres da morte; considerados tristes, mas sempre alegres; pobres, ainda que tenhamos enriquecido a muitos; como nada tendo, mas tudo possuindo" (2Cor 6,8-10). "Em tudo somos atribulados, mas não esmagados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos..." (2Cor 4,8-10) O que nas bem-aventuranças do Evangelho de S. Lucas é conselho e promessa, é em S. Paulo a experiência vivida do apóstolo. Ele se sente "colocado no último lugar", como um condenado à morte e tornado espetáculo para o mundo, sem casa, insultado, difamado (1 Cor 4,9-13). E, no entanto, ele envolve tal experiência numa alegria infinita; justamente como extraditado, que se despojou de tudo para levar Cristo aos homens, ele experimenta a relação interior entre a cruz e a ressurreição: somos entregues à morte "também para que se revele a vida de Jesus no nosso corpo mortal" (2Cor 4,11).

O olhar sobre S. Paulo e sobre S. João clarificou duas coisas: as bem-aventuranças exprimem o que significa o discipulado. Elas se tornam tanto mais concretas e reais quanto mais completa for a entrega do discípulo ao serviço, como podemos ver exemplarmente em S. Paulo. O que elas significam não se pode exprimir simplesmente de um modo teórico; isso é dito na vida e no sofrimento e na alegria misteriosa do discípulo, que se entregou totalmente a seguir o Senhor. Assim, torna-se claro um segundo ponto: o caráter cristológico das bem-aventuranças. O discípulo está ligado ao mistério de Cristo. A sua vida mergulhou na comunhão com Cristo: já não sou eu que vivo, é Cristo quem vive em mim (Gl 2,20). As bem-aventuranças são transposição da cruz e da ressurreição para a existência do discípulo. Mas elas valem para o discípulo, porque primeiro se realizaram como modelo original em Cristo mesmo.

Fonte:

Livro Jesus de Nazaré
Joseph Ratzinger

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