Deus acolhe quem está afastado e integra quem está em casa
O povo de Israel celebra a sua primeira Páscoa na terra prometida em Gilgal (Josué 5,9-12) nas imediações da cidade de Jericó. Foi um momento festivo em que todos foram convidados a esquecer a vergonha da escravidão no Egipto e a alimentar-se dos primeiros produtos da terra. Fizeram uma experiência nova: o maná, alimento do deserto, deixou de cair porque já não tinham necessidade dele na terra que começaram a cultivar. A partir deste dia começou uma nova vida.
À medida que nós também caminhamos para a Páscoa, vamos desmontando uma série de esquemas que construímos e pelos quais orientávamos muitos dos nossos comportamentos. O paradigma do êxodo do povo de Israel, que foi tirado do Egito, que passou da escravidão para a liberdade na sua terra, continua a estar presente na nossa caminhada e a ser uma referência em todas as Quaresmas.
Tem que haver mudanças na vida: abandonar concepções e estilos de vida do passado e começar de novo. A palavra de Deus, apresentando-nos hoje a parábola do Pai Misericordioso - Evangelho: Lucas 15,1-3.11-32, que nos obriga a sair de uma certa lógica, de uma normalidade cômoda, interpela-nos para ver a realidade de modo diferente. Se Deus é misericordioso, e todos nós vamos repetindo isto, temos de olhar para Ele e para as pessoas de modo muito diferente da “normalidade” feita com os critérios que habitualmente usamos.
1. A história contada por nós
— É muito conhecida a história do filho que abandona a casa do pai exigindo os bens a que tinha direito. Nós olhamos para o texto e apreciamos o gesto do pai que faz a vontade ao filho repartindo pelos dois os seus bens…
— Depois, a parábola diz que um filho, o mais novo, saiu de casa e partiu para um país distante esbanjando por lá os seus bens… É suposto que o outro, o mais velho, tenha ficado em casa… E imediatamente fazemos a nossa avaliação considerando que um é bom e o outro é mau…
— A ideia parece confirmar-se porque o que saiu de casa acabou por viver de um modo muito precário, reduzido à servidão e à fome, depois de ter gasto tudo o que tinha recebido na herança… Não podia ter caído mais no fundo…
— De acordo com os nossos critérios o irmão mais velho era um filho que se comportava muito bem, assim “como Deus quer”, diríamos nós… O mais novo “teve aquilo que merecia, pois claro”…
E a nossa história acabaria aqui, com cada um a sofrer as consequências dos seus atos, com tal evidência que não levantaria grandes questões… Só que, para Deus, as coisas não são assim e Ele faz continuar a história…
2. A resposta de Deus à mesma história
— Onde os defensores da lei e da justiça põem um ponto final, Jesus coloca uma oportunidade para refazer a vida… Nunca Deus dá por terminada a nossa história, aconteça o que acontecer…
— O nosso Deus, que é bom (Salmo 34), misericordioso e compassivo, cura as feridas, alivia o sofrimento e repara, como só Ele pode fazer, os danos que nós provocamos…
— Isto nunca é fácil de perceber para os que insistem em apresentar um Deus que dá o prêmio aos bons e castiga os maus, que dá a cada um só aquilo que ele merece… Esta era a lógica do irmão mais velho, mas que aqui é, simplesmente, abafada…
— Esta lógica do prêmio e da recompensa para “os bem comportados” gera comportamentos egoístas, rancorosos, pouco dados à alegria e à festa, porque nunca se sai dos mesmos esquemas encaixados em obrigações e consequentes direitos… A imagem deste Deus que é um agente que garante direitos adquiridos não encaixa nesta história…
— Aquele pai saía todos os dias para ver se o filho voltava… E porquê, se ele tinha decidido por si e tinha feito do seu dinheiro o que bem entendia?!… Pois: para o pai, as coisas não se resolvem deixando-as na sua “normalidade”…
— Um filho que delapida os bens que eram do seu pai, um sem-vergonha que volta a casa movido uma vez mais pelo seu próprio interesse, pareceria não ter lugar em casa senão depois de reparar, pelo menos em parte, os danos que tinha causado…
— Mas o Pai ultrapassa tudo para o receber de braços abertos e o cobrir de beijos… Isto não parece normal; ainda que o pai seja sempre pai parece-nos que ultrapassa os limites comportando-se como se nada tivesse acontecido e, ainda por cima, organiza uma grande festa em sua honra…
— Jesus, que convive com publicanos e pecadores, apresenta o Deus da misericórdia e não do juízo… A imagem de um Deus que premie os bons e castiga os maus não faz parte deste relato… O nosso Deus preocupa-se muito mais com o bem-estar das pessoas do que com o patrimônio…
3. O caminho da reconciliação
— A parábola também ilustra muito bem a dificuldade que todos temos de recomeçar juntos e de aceitar as mudanças… Todos precisamos de voltar a casa como o filho mais novo porque fomos esbanjadores e desregrados… “Quem não tiver pecados atire a primeira pedra” (Jo 8,7).
— E todos temos também de ultrapassar os ressentimentos do irmão mais velho que põem a claro a nossa dificuldade de ser autônomos adoptando um estilo de vida que encobre intenções pouco claras… Com sinceridade, reconheceremos que os nossos comportamentos são uma parte do irmão mais novo, outra parte do mais velho, consoante as ocasiões…
— Mais uma vez se evidencia que a reconciliação é obra de Deus que, de braços abertos, acolhe o que vem de longe e integra o que está em casa…
Comentários
Postar um comentário