O culto e a vida – Quem recusa o sacrifício afasta-se da santidade
A Quaresma é um tempo de conversão e de renovação. Mas não acontece verdadeira e autêntica renovação se não se passa por uma corajosa revisão da própria vida moral e da própria vida litúrgica; com palavras mais simples, dos próprios costumes e da própria oração.
A reflexão de hoje dirige nossa atenção exatamente sobre estes dois aspectos importantíssimos da vida cristã. Trata-se de uma catequese muito prática: não coisas novas para aprender, mas coisas velhas a ser feitas.
Comecemos pelo segundo requisito: a reforma da vida cultual ou litúrgica. Dela nos falou o Evangelho: Depois, foi até aqueles que vendiam pombas e lhes disse: “Tirem essas coisas daqui! Parem de fazer da casa de meu Pai uma casa de negociantes!” (Jo 2,16). “A minha casa será chamada casa de oração para todos as nações” (Mc 11,17).
Ao chegar ao templo depara-se com a tristeza de um espetáculo que já presenciara em outras ocasiões. O templo, a casa de seu Pai, está invadida pelos comerciantes de rolas e pombas e pelos cambistas. Como filho tem autoridade na casa do Pai, tem interesse em preservar aquele espaço como espaço de oração e em deixar claro que ele é o herdeiro daquele lugar.
Não se trata tanto do lugar de pedra que acolhe os peregrinos de Jerusalém, mas o coração dos homens que se deixaram dominar pelos negócios, escravizar pelo dinheiro e fascinar pela possibilidade de concretizar os seus interesses mesquinhos, quando comparados com o Senhor Deus que os libertou da casa da escravidão e lhes deu uma lei, como carta orientadora para viverem em liberdade. Curvaram-se diante do dinheiro e prestam-lhe culto às portas da casa do Deus vivo.
Fizeram da imagem gravada nas moedas o rosto do verdadeiro Deus e reconhecem-no acima de todas as outras realidades. Deixaram que o dinheiro tomasse o lugar de Deus e impedisse o amor ao próximo.
É neste contexto que nós, como os discípulos, à luz da ressurreição de Cristo, somos chamados a entender que o corpo de Cristo que é a Igreja, verdadeiro templo, e o nosso corpo, lugar onde Deus habita, precisa de ser purificado dos ídolos que se colaram a nós e diante dos quais nos vamos curvando aqui e ali, em tantas circunstâncias da vida.
A purificação do templo é um gesto messiânico. Quer indicar o início do tempo novo, escatológico, em que são oferecidas finalmente a Deus as ofertas como convém (Ml 3,3) e se adora a Deus em espírito e em verdade (Jo 4,23). Na discussão que se segue com os judeus, Jesus define em que consiste este culto novo e qual é seu lugar: Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias. Ele falava do templo do seu corpo. Jesus ressuscitado é o templo do novo culto. Cada oração e oferta a Deus deve ser feita, doravante, “em Cristo”, para que seja um culto espiritual vivo, santo e agradável a Deus (cf Rm 12,1).
A outra condição para que nosso culto seja “agradável” a Deus é que não seja hipócrita, quer dizer, seja expressão de uma vida toda orientada para Deus e obediente à sua lei e não um momento separado do resto, um honrar a Deus com os lábios, mantendo o coração (e a vida) longe dele: De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas?, diz Javé. Já estou farto de holocaustos de cordeiros e da gordura de novilhos cevados. Eu não quero sangue de touros e bodes (Is 11,1).
Lembrando estas severas advertências da Escritura, a liturgia deste 3º Domingo da Quaresma, nos tornou a propor, o Decálogo (Ex 20,1-17). Não pronunciarás o nome de Javé, teu Deus, em vão; Lembra-te do dia de Sábado, para santificá-lo; honra teu pai e tua mãe; não matarás; não cometerás adultério; não furtarás; não dirás falso testemunho; não cobiçaras as coisas de teu próximo; não desejarás a mulher do teu próximo.
Estes mandamentos foram a base da vida moral, antes do povo hebreu e depois do povo cristão. Não contém toda a lei; sua forma negativa (não fazer) indica que se trata de alguns “marcos limítrofes” que delimitam um âmbito moral, antes que descrevê-lo positivamente; dentro devem ser colocados “toda a lei e os profetas” e de maneira especial o mandamento do amor que os resume a todos (cf Mt 22,40). É precisamente este caráter “negativo” que assegura aos dez mandamentos sua perene, imutável atualidade.
O texto apresenta logo de início uma afirmação e não um mandamento, ainda que o chamemos assim: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, dessa casa de escravidão”. É esta afirmação que dá sentido e justificação aos mandamentos que se seguem. O fundamento destes mandamentos não está no conceito de lei, mas na ação de Deus que os justifica: “fui eu que te fiz sair da terra do Egito, da casa da escravidão”. O Deus que os libertou do Egito é agora quem os ensina o comportamento necessário para continuar a viver em liberdade diante de Deus e diante dos homens.
No início, eles não são percebidos nem mesmo como lei, mas como evento: o povo entra na aliança com Deus e os mandamentos são um sinal de sua pertença a Javé; são a proclamação de seu caráter de povo eleito, diferente de todos, isto é, santo. Daqui o fato, surpreendente para nós, de que Israel não fala da lei como um peso, ou de uma imposição, mas como de um dom sumamente grande, de um facho que ilumina meus passos (cf Sl 119,105); fala dela com paixão e com desmedido orgulho como vemos nesse Salmo em destaque.
O Decálogo é uma escolha de vida que Deus propõe ao homem: Olha que hoje ponho diante de ti a vida com o bem, e a morte com o mal; observes seus mandamentos, suas leis e preceitos [...] para que vivas e te multipliques [...] se não obedeceres e se te deixares seduzir eu te declaro neste dia: perecereis (Dt 30,15ss). O Decálogo é para o homem, não contra ele; não quer amarrar ou limitar sua liberdade, mas antes soltá-la. Aquilo que proíbe não é, com efeito, algo arbitrário que desagrada a Deus não se sabe por que, mas é o que compromete antes de tudo o próprio homem e sua possibilidade de ter relações equilibradas com os outros, de ser, em outras palavras, autenticamente ser-humano. O descanso do sábado, por exemplo, é útil ao homem (para que não se reduza a um animal de trabalho) mais do que exigido por Deus, e é exigido por Ele justamente porque é um bem para o ser-humano.
A palavra de Deus, que procuramos explicar até aqui, interpela em mais pontos nossa vida e se torna estímulo poderoso de renovação. Antes de tudo em nível de compreensão e de fé. Dedicado com todas as suas forças ao anúncio do evangelho, Paulo sabe que o centro da sua mensagem é o Messias, “Cristo crucificado” (1Co 1,22-25).
Paulo escreve para os cristãos de Corinto e questiona-os sobre o mistério da cruz de Cristo, esperando que se definam ou do lado dos judeus a quem a cruz escandaliza ou do lado dos gregos para quem a cruz é loucura. E alerta para o fato de que, na loucura e fraqueza da cruz de Cristo se escondem a sabedoria e o poder de Deus para os que foram chamados. Entre os milagres dos judeus e a sabedoria dos gregos ergue-se a cruz de Cristo como evangelho anunciado por Paulo. Para o cristão, a cruz não é nem loucura nem escândalo, mas título de glória (Gl 6,14).
Agora tudo – inclusive a Lei – toma sentido a partir de Jesus Cristo. Nós não estamos mais sozinhos diante da Lei, a gemer como São Paulo pela nossa impotência em observá-la (cf Rm 7,7); entre nós e o Decálogo existe no meio Jesus Cristo crucificado. Ele é a “sabedoria de Deus” para nós, isto é, a nossa lei: “Por acaso estou dizendo que a lei de Deus é pecaminosa? Claro que não! Na verdade, foi a lei que me mostrou meu pecado. Eu jamais saberia que cobiçar é errado se a lei não dissesse: “Não cobice”. Esta lei não é menos exigente do que a antiga; pelo contrário, é muito mais (Ouvistes o que foi dito [...] mas eu vos digo [...], mas é lei interior que não se limita a prescrever o bem, mas o executa conosco pela vida no Espírito.
Para sermos discípulos de Jesus, temos de seguir o seu conselho: Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16,24). Não é possível seguir o Senhor sem a Cruz. As palavras de Jesus tem plena vigência em todos os tempos, uma vez que foram dirigidas a todas as pessoas, pois quem não carrega a sua cruz e me segue – diz-nos Ele a cada um – não pode ser meu discípulo (Lc 14,27).
Carregar a cruz – aceitar a dor e as contrariedades que Deus permite para nossa purificação, cumprir com esforço os deveres próprios, assumir voluntariamente a mortificação cristã – é condição indispensável para seguir o Mestre.
“Que seria de um Evangelho, de um cristianismo sem Cruz, sem sofrimento, sem o sacrifício da dor?, perguntava-se Paulo VI. Seria um Evangelho, um cristianismo sem Redenção, sem Salvação, da qual – devemos reconhecê-lo com plena sinceridade – temos necessidade absoluta. O Senhor salva-nos por meio da Cruz; com sua morte, devolveu-nos a esperança, o direito à Vida ...”. “Seria um cristianismo desvirtuado que não serviria para alcançar o Céu, pois o mundo não pode salvar-se senão por meio da Cruz de Cristo” (São Leão Magno, Sermão 51).
Há um paradoxo na mortificação, um mistério, que só se pode compreender quando há amor: por trás da aparente morte, encontra-se a Vida; e aquele que, dominado pelo egoísmo, procura conservar a vida para si, esse acaba por perdê-la; e aquele que a perder por minha causa achá-la-á. Para podermos dar fruto, amando a Deus e ajudando os outros de uma maneira efetiva, é necessário que nos abramos ao sacrifício. Não há colheita sem plantio (Jo 12,24-25).
Para sermos sobrenaturalmente eficazes, devemos morrer mediante a contínua mortificação, esquecendo-nos completamente da nossa comodidade e do nosso egoísmo.
Com a sua palavra, Jesus quer, hoje, limpar-nos derrubando as bancas dos nossos ídolos que têm nomes como dinheiro, fama, poder, ideologias, comportamentos consensualizados, ideais empobrecidos, autossuficiências, espiritualidades sem Deus, compromissos sem amor, amiguismos oportunistas, esquemas filosóficos e argumentos traiçoeiros, que obscurecem a verdadeira imagem de Deus e do próximo.
O Pai de Jesus é o dono desta casa que somos nós e Jesus tem sobre nós o poder que lhe vem da cruz. Como os coríntios, também nós temos que saber de que lado estamos. Com os judeus à espera de milagres e manifestações espetaculares, com os gregos perdidos em argumentos e esquemas filosóficos ou como homens e mulheres chamados a viver da sabedoria e do poder de Deus manifestado na cruz de Jesus?
Eis como a Palavra de Deus se torna hoje ocasião de renovação quaresmal. Ela nos impele com uma força incomum a nos lavar, a nos purificar, a tirar o mal que há em nossas ações (cf Is 1,16), a eliminar o fermento velho, para ser uma massa nova e celebrar assim, dentro em breve, a festa do Senhor com ázimos de sinceridade e de verdade (cf 1Co 5,7s).
Pelas minhas decisões pouco discernidas, escolhi os ídolos, preferi os meus interesses particulares, desejei conquistas perigosas que me tornaram escravo. Hoje, limpa com a tua Palavra esta casa que eu sou e devolve-me a liberdade de pertencer-te.
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