Liberdade ou Alienação? Uma Jornada do Espírito no Tempo da Abundância

 





Vivemos cercados de opções, estímulos, possibilidades. A abundância de nossa era, como um banquete sempre servido, promete liberdade — mas frequentemente nos entrega escravidão. Somos tentados a confundir liberdade com satisfação dos desejos, esquecendo que a verdadeira liberdade se revela na capacidade de escolher o bem, de renunciar ao egoísmo, de viver com sentido. Como nos mostra J.R.R. Tolkien em A Sociedade do Anel, até os dons mais atraentes (como o Anel de Poder) podem ser armadilhas sutis, que seduzem prometendo controle, mas que acabam por destruir a alma daquele que os busca por orgulho.


O mundo contemporâneo criou um “Peter Pan moderno”: adultos infantis, que fogem da responsabilidade, temem o sacrifício e refugiam-se em distrações. Como o Gollum, tornam-se escravos do “precioso” — não de um anel mágico, mas de um estilo de vida centrado no prazer imediato, no consumo incessante, na busca de status. Nessa cultura, a abundância não liberta, entorpece; não eleva, superficializa; não nutre, satura. Como disse São João Paulo II:

“A liberdade moderna se transformou em libertinagem, e o progresso material, em pobreza espiritual.”


Mas para que serve, afinal, a abundância? A resposta não está no acúmulo de coisas, mas na possibilidade que ela oferece de agir com justiça, de exercer a caridade, de viver com prudência, e de fortalecer-se na fortaleza moral diante dos desafios. São as virtudes cardeais — prudência, justiça, fortaleza e temperança — que regulam a liberdade e a fazem florescer. Sem elas, a liberdade desanda em tirania de si mesmo; com elas, transforma-se em caminho para o bem comum.


No fundo, a pergunta “Abundância para quê?” é a mesma que ecoa no coração de Frodo diante do Anel: usar o que temos para dominar, ou para servir? Para nos satisfazer, ou para nos doar? Como cristãos, sabemos que toda abundância é dom, e como tal, deve ser partilhada. Se a cultura moderna, como disse Bento XVI, sofre de uma “eclipse de Deus”, é porque trocamos o Criador pelos seus dons, o sentido pela sensação, o bem pela utilidade.


É hora de uma reeducação do espírito: ensinar às novas gerações que a liberdade é mais que autonomia, é responsabilidade; que o progresso material deve estar a serviço do crescimento moral e espiritual; que a maturidade exige enfrentamento da dor e não fuga dela; que a cultura verdadeira é raiz e não verniz.



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Em A Sociedade do Anel, J.R.R. Tolkien trata a liberdade como um bem precioso e profundamente vinculado à responsabilidade moral, à coragem interior e à capacidade de resistir ao poder corruptor. A obra não aborda o tema de forma abstrata ou filosófica, mas sim por meio de escolhas concretas feitas pelos personagens — e como cada um lida com a tentação do poder, especialmente o representado pelo Um Anel.



Liberdade como escolha moral e sacrificial


O Um Anel é símbolo do poder absoluto — mas esse poder não liberta, escraviza. Aqueles que buscam o Anel para fazer o bem (como Boromir) acabam sendo seduzidos pela promessa de controle. Tolkien mostra que usar mal a liberdade, mesmo com boas intenções, pode levar à destruição pessoal e coletiva.


Frodo é o grande exemplo de alguém que exerce a liberdade com humildade: ele aceita a missão de levar o Anel até a Montanha da Perdição, não porque deseja o poder, mas por entender que é o certo a fazer, mesmo contra seus próprios desejos e medos. Ele é livre porque ama o bem mais do que ama a si mesmo.



A liberdade dos pequenos frente ao domínio dos grandes


Tolkien valoriza a liberdade dos “pequenos” (hobbits, anões, povos livres) em oposição ao desejo de dominação de Sauron e Saruman. Eles representam sistemas que anulam a liberdade dos indivíduos e dos povos, submetendo tudo à força e à uniformidade. Em contrapartida, a Sociedade do Anel é feita de diferentes raças que livremente se unem por um bem maior, sem imposições, num modelo de colaboração.







A resistência ao mal como exercício da verdadeira liberdade


Personagens como Galadriel e Gandalf mostram que dizer “não” ao Anel é também um ato de liberdade. Eles sabem que, se aceitassem usá-lo, mesmo para o bem, se tornariam tiranos. Essa autonegação mostra que a verdadeira liberdade está em controlar o desejo de poder, e não em ceder a ele.



Para Tolkien, a liberdade não é fazer o que se quer, mas escolher o bem mesmo com sacrifício. É um caminho árduo, que exige humildade, renúncia e coragem. A vitória da Sociedade do Anel só é possível porque vários personagens escolheram, livremente, seguir o caminho do bem — mesmo quando isso custava tudo.

“Nem todos os que vagueiam estão perdidos.” – essa frase sobre Aragorn também vale para a liberdade: quem caminha com consciência, mesmo em meio à escuridão, não está perdido, mas está fazendo uso da sua liberdade mais profunda.



Tolkien nos lembra que os pequenos, os humildes e os justos é que salvam o mundo. Que a nossa abundância seja ocasião para o serviço, o sacrifício, a comunhão. Só assim ela encontrará sentido.

“Foi para a liberdade que Cristo nos libertou.” (Gl 5,1)

Que essa liberdade, iluminada pela fé, cultivada pelas virtudes e enraizada na verdade, transforme a abundância em missão, e não em perdição.


Em tempos de excesso, sejamos sementes de sentido.



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Vamos relacionar a compreensão de liberdade em A Sociedade do Anel com a visão cristã, particularmente de Santo Agostinho e São João Paulo II, destacando como Tolkien, um católico fervoroso, permeia sua obra com princípios profundamente cristãos — ainda que de forma não explícita.







Liberdade como capacidade de escolher o bem (Santo Agostinho)

Para Santo Agostinho, a liberdade verdadeira não é simplesmente a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, mas a capacidade de escolher o bem com plena vontade e razão. O mal, na visão agostiniana, é uma corrupção da liberdade, uma escolha desordenada.

Isso é perfeitamente ilustrado por Tolkien na figura de Frodo e, sobretudo, Gollum:


  • Frodo luta interiormente contra o peso do Anel, usando sua liberdade para perseverar no bem.
  • Gollum, ao contrário, é escravizado por seus desejos, já não é mais livre. Sua "liberdade" é fictícia — ele é dominado pela concupiscência (algo que Agostinho reconheceria como fruto do pecado original).


Frase agostiniana que sintetiza:

“Livre é aquele que se submete à verdade.”



Liberdade e responsabilidade no amor (São João Paulo II)


São João Paulo II, especialmente em sua encíclica Veritatis Splendor e em sua teologia do corpo, ensina que a liberdade deve ser orientada pela verdade e pela responsabilidade no amor. Quando a liberdade é usada de forma egoísta, ela deixa de ser libertadora e se torna autodestrutiva.


Isso ecoa nas palavras de Gandalf e Galadriel, que se recusam a usar o Anel porque sabem que pelo bem que desejariam fazer, causariam o mal.

E Frodo — ao carregar o Anel até o fim — vive a liberdade como sacrifício e entrega em favor dos outros, o que São João Paulo II chamaria de “liberdade no amor oblativo”.

“A liberdade do homem é, na verdade, uma participação na liberdade divina.” (Veritatis Splendor, §41)



A liberdade que floresce na comunhão


O cristianismo vê a liberdade como um dom que floresce na comunhão com Deus e com os outros. Em O Senhor dos Anéis, a liberdade só é realmente preservada porque há comunhão entre os povos livres (homens, elfos, anões, hobbits). Eles se unem, não para dominar, mas para resistir ao mal.


Assim também o cristão, segundo o pensamento da Igreja, só se realiza plenamente quando vive sua liberdade como serviço ao bem comum, ao Reino de Deus, e não como autonomia absoluta.


Tolkien e a liberdade cristã

Tolkien apresenta a liberdade como:


  • Dom precioso e frágil: pode ser perdida pela escravidão do pecado (Anel);
  • Responsabilidade moral: não basta ter escolha, é preciso escolher o bem;
  • Caminho de comunhão: a liberdade floresce no amor, no sacrifício e na unidade.


E isso ressoa no Evangelho:

“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Jo 8,32)
“Foi para a liberdade que Cristo nos libertou.” (Gl 5,1)



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Liberdade para Crescer: Como a Abundância Exige Maturidade e Virtude



Em uma era de abundância material e tecnologias cada vez mais sofisticadas, o paradoxo que assombra o espírito humano é inquietante: nunca tivemos tanto, e nunca estivemos tão vazios. A promessa moderna de liberdade ilimitada — fazer o que se quer, quando se quer e como se quer — tem produzido uma geração incapaz de amadurecer, um tipo de "Peter Pan moderno", que evita responsabilidades, vive de distrações e teme o sacrifício. Nesse cenário, a liberdade deixou de ser um caminho para o bem e passou a ser um instrumento de alienação.


No entanto, à luz da tradição cristã e da reflexão filosófica profunda de Miguel A. Fuentes, em sua obra Educação, Cultura e Maturidade, é possível recuperar a grandeza da liberdade como dom e missão, como fonte de realização integral do ser humano.



A liberdade como dom espiritual


Para Fuentes, a liberdade é o dom que define a pessoa humana. É a capacidade de autodeterminação, de dirigir-se, por meio da inteligência e da vontade, para o seu verdadeiro fim: a realização plena segundo sua natureza racional e espiritual. A liberdade não é simplesmente ausência de obstáculos externos. Trata-se de uma potência interior, que nos permite transcender o instinto, discernir o bem, escolher o que é correto, mesmo que seja difícil.


Essa concepção ecoa em A Sociedade do Anel, de Tolkien, quando vemos personagens como Frodo, Sam e Gandalf recusarem o caminho fácil do poder absoluto em nome de um bem maior. Em um mundo corrompido pela sede de domínio, a verdadeira liberdade é demonstrada por quem sabe renunciar ao desejo e agir com responsabilidade.



A formação do caráter: inteligência, vontade e afetos


A liberdade se realiza quando há harmonia entre nossas faculdades superiores (inteligência e vontade) e as potências inferiores (instintos, desejos, emoções). Segundo Fuentes:

  • inteligência deve reconhecer o bem verdadeiro;
  • vontade, mover-se em direção a ele;
  • Os afetos, então, se ordenam conforme essa escolha.


No mundo atual, essa harmonia está frequentemente rompida. As emoções dominam a razão, os impulsos conduzem a vontade, e a liberdade se deforma em impulsividade e hedonismo. O resultado é uma geração que vive de “curtidas”, jogos, prazeres rápidos, e que foge de toda forma de renúncia — sem perceber que isso mina sua força interior.



As ameaças à liberdade verdadeira

Fuentes aponta com precisão as causas da crise da liberdade:


  • ignorância: quando não se conhece o bem, qualquer coisa serve.
  • fraqueza da vontade: mesmo sabendo o que é certo, falta força para realizar.
  • desordem dos desejos: paixões não governadas pela razão escravizam.
  • pressão da cultura: um sistema que premia o desempenho e anestesia o sofrimento.
  • falsa ideia de liberdade: confundida com arbitrariedade, ela se torna destrutiva.


Essa é a crítica de Byung-Chul Han em A Sociedade Paliativaa dor é escondida, a crítica é silenciada, e a liberdade se torna um disfarce de um sistema que exige produtividade e positividade, mesmo que isso nos custe a alma. Assim, a abundância se torna prisão.



A Lei Moral: educadora da liberdade


Para restaurar a liberdade, é preciso recuperar a lei moral como educadora. A lei não limita a liberdade — ela a orienta para o bem verdadeiro, para o florescimento humano. Como diz São João Paulo II, a liberdade não é fim em si, mas está a serviço da verdade e da dignidade da pessoa.


  • lei moral ilumina a inteligência, ensinando a distinguir o bem do mal.
  • Fortalece a vontade, ao mostrar que vale a pena escolher o bem.
  • Ordena os afetos, ao mostrar que o prazer não é o critério do certo.
  • Forma as virtudes, que são hábitos do bem, e tornam a liberdade estável e madura.


A educação moral — baseada na verdade, na virtude, na cultura enraizada — é o que pode salvar a abundância de se transformar em ruína. Não basta ter recursos. É preciso saber usar a liberdade para crescer, para amar, para servir. Só assim a modernidade se tornará verdadeiramente humana.



Conclusão: Da Abundância à Maturidade


A pergunta essencial é: para que serve a abundância? Se ela não nos conduz à maturidade, à responsabilidade, ao bem comum — ela é estéril. A liberdade, mal usada, escraviza; bem usada, liberta.


A cultura atual precisa de reeducação do espírito: recuperar o valor da verdade, da beleza, da virtude, do sacrifício, da responsabilidade. Como na jornada de Frodo, não é o mais forte que vence, mas o mais fiel; não o mais brilhante, mas o mais humilde.


A liberdade só é verdadeira quando está a serviço do amor e da verdade. Como nos lembra o Evangelho:

“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Jo 8,32)


E, como afirmaria Miguel A. Fuentes: a liberdade não é um fim para si mesma, mas um meio sublime para que o homem se torne o que está chamado a ser: imagem viva de Deus, capaz de amar, de oferecer-se e de encontrar plenitude no dom de si.


Essa é a missão da abundância: não nos satisfazer, mas nos transformar. E a missão da liberdade: nos tornar maduros para amar.

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