Testemunha Fiel até o fim: o Papa Francisco e a Luz da Ressurreição
Imagem Papa Francisco: bênção silenciosa na Praça São Pedro vazia, durante a pandemia
À luz de Atos 2,14.22-32 | Salmo 15(16) | Mateus 28,8-15
*A Palavra que ressoa no silêncio do luto: "Deus o ressuscitou"*
Neste dia em que a Igreja contempla, em oração silenciosa, o falecimento do Papa Francisco, a liturgia nos coloca diante do núcleo ardente da fé cristã: *Deus ressuscitou Jesus — e disso somos testemunhas* (At 2,32). Aquelas palavras de Pedro não ecoam apenas no passado, mas ardem no presente. E nelas, contemplamos também o mistério da vida e missão do Papa Francisco, apóstolo contemporâneo, que percorreu os caminhos do mundo anunciando que a misericórdia tem um rosto e um nome: Jesus Cristo.
Como Pedro no Pentecostes, Francisco foi para nós um intérprete das obras de Deus em nossos dias. Com voz simples e coração inflamado, explicava que o Ressuscitado continua a se manifestar em sinais, prodígios e gestos de misericórdia entre os pobres, os migrantes, os doentes, os últimos. Não foi apenas um mestre, mas *uma testemunha viva da novidade subversiva do Evangelho*, fiel até o fim, mesmo quando os ventos eram contrários.
*A fé viva que vence a morte*
Santo Agostinho ensina que a ressurreição de Cristo não é apenas um fato histórico, mas *o princípio de uma nova humanidade* (cf. Sermão 229). O Papa Francisco viveu esta fé pascal com a firmeza dos mártires antigos — ainda que com a mansidão evangélica. Como as mulheres do Evangelho, ele se deixou surpreender pela Vida em meio às sombras, e correu a anunciar que *o túmulo está vazio e o coração pode ser cheio de esperança*.
São Gregório de Nazianzo, ao falar dos pastores da Igreja, dizia que o verdadeiro bispo é aquele cuja vida se torna "uma páscoa contínua" *— morrer cada dia para si mesmo para que outros tenham vida*. Eis o testemunho do Papa Francisco. Morreu para o conforto, para o prestígio, para as lógicas do poder. Viveu, como o Cristo, *humilhado e exaltado*, servo e guia.
*Humildade, verdade e eternidade*
São Tomás de Aquino, na Suma Teológica (III, q.53), afirma que a ressurreição de Cristo é a causa da nossa justificação, da nossa fé e da nossa esperança. Assim, a vida do Papa Francisco pode ser lida como *eco da vida do Ressuscitado*: acolhia os pecadores com ternura, os poderosos com verdade, os pobres com a atenção dos santos. Ele entendeu que a autoridade verdadeira nasce do dom de si e que a glória não está em ser servido, mas em servir.
Sua morte não apaga sua missão, pois quem vive unido ao Ressuscitado vive para sempre. Como o salmista canta: *“Delícia eterna e alegria ao vosso lado”* (Sl 15,11). A Igreja pode agora dizer dele o que Pedro disse de Jesus: *“não foi abandonado à morte”.*
*O Papa como profeta do Espírito*
Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, sempre destacou que *o testemunho cristão mais autêntico é aquele que se enraíza no Espírito Santo e floresce na misericórdia*. O Papa Francisco foi, para o nosso tempo, essa flor de Deus no campo do mundo: *uma vida cheia do Espírito, despojada, leve, e por isso penetrante*.
Ele não se curvou ao medo, à mentira nem às pressões dos sistemas. Como Maria Madalena, correu cheio de temor e de alegria, carregando a notícia do Ressuscitado até os confins da Terra. Ensinou-nos que a Igreja não é uma fortaleza, mas um hospital de campanha; que o anúncio não se faz com força, mas com compaixão.
*A alma purificada para a união com Deus*
*”A alma que se purifica na humildade e na dor se torna apta à união com Deus”* Garrigou-Lagrange
O Papa Francisco, desde os seus primeiros gestos — recusando os palácios, inclinando-se pedindo a bênção do povo — demonstrou essa alma purificada. Viveu no desapego, rezou no silêncio, sofreu no escondimento. E assim, *foi transformado em altar vivo, onde Deus se comunicava ao mundo*.
Hoje, quando partiu, ele não nos deixa órfãos. Sua vida foi uma resposta contínua ao chamado pascal: “Não temais! Ide e anunciai!” (Mt 28,10). Ele vive agora a terceira idade da alma: *a união eterna com Aquele a quem serviu com amor*.
A passagem de um servo fiel
No dia em que a Igreja se veste de luto e esperança, somos chamados a contemplar a vida e a morte do Papa Francisco — não como um fim, mas como consumação da fidelidade de um discípulo de Cristo. Sua vida, marcada por simplicidade, misericórdia e ousadia profética, é sinal do que a graça pode operar numa alma que se abandona à vontade divina. Hoje, choramos, mas também rendemos graças: "Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé" (2Tm 4,7).
A herança apostólica viva
Santo Inácio de Antioquia, em sua carta aos Romanos, expressava o desejo de tornar-se trigo de Deus, moído pelos dentes das feras para ser pão puro de Cristo. O Papa Francisco, com sua entrega pastoral aos pobres, migrantes, enfermos e prisioneiros, viveu essa mesma espiritualidade eucarística: uma vida triturada por amor, que se fez pão para o mundo. Santo Agostinho, em suas Confissões, dizia: “Inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em Ti.” Eis a inquietação santa que moveu Francisco: não descansou enquanto não levou o Evangelho às periferias existenciais.
Em sua vida e magistério, Francisco foi como uma vela acesa no meio das tormentas da Igreja. Permitiu que o Espírito soprasse onde quisesse — do sínodo sobre a Amazônia à bênção silenciosa na Praça São Pedro vazia, durante a pandemia. Ele foi, como diz Cantalamessa, “um homem possuído por um amor maior, livre porque ferido por Deus”.
Retrospectiva do Papado de Francisco (2013–2025): O Pastor com o cheiro das ovelhas
No dia 13 de março de 2013, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi eleito Papa, assumindo o nome de Francisco, em homenagem a São Francisco de Assis. Desde o início, seu papado foi marcado por gestos proféticos, linguagem simples, profunda espiritualidade e ousada opção pelos pobres. A escolha do nome já prenunciava a missão: reformar a Igreja com a força do Evangelho, da simplicidade e da paz.
Início simbólico e o estilo pastoral
No primeiro momento de sua eleição, pediu que o povo o abençoasse antes de abençoá-lo. Recusou os ornamentos pontifícios tradicionais, optou por morar na Casa Santa Marta em vez dos apartamentos papais, e celebrou a Missa com funcionários do Vaticano como um simples pároco.
Símbolo forte: “Quero uma Igreja pobre para os pobres” — foi o eixo de seu pontificado.
Encíclicas e documentos marcantes
Francisco soube aliar profundidade doutrinal à atualidade pastoral. Seus escritos são faróis para o nosso tempo:
- Evangelii Gaudium (2013): Exortação sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Um chamado vibrante à conversão missionária, onde apresenta o ideal de uma “Igreja em saída”.
- Laudato Si’ (2015): Encíclica sobre o cuidado com a casa comum. Um marco da doutrina social da Igreja, unindo ecologia, justiça social e espiritualidade.
- Amoris Laetitia (2016): Reflete sobre o amor na família, valorizando a realidade concreta e oferecendo discernimento pastoral para situações complexas.
- Fratelli Tutti (2020): Um apelo universal à fraternidade e à amizade social, em meio a um mundo fragmentado e polarizado.
- Laudate Deum (2023): Suplemento à Laudato Si’, com tom mais urgente, diante da crise climática.
Esses textos, junto com inúmeros discursos e homilias, revelam um pensamento enraizado no Evangelho, mas sensível aos gritos da Terra e dos pobres.
Reformas e gestos de renovação
- Reforma da Cúria Romana: Com a Constituição Praedicate Evangelium (2022), reorganizou os dicastérios para dar mais centralidade à missão evangelizadora.
- Abertura à escuta sinodal: Lançou o processo do Sínodo sobre a sinodalidade (2021–2024), incentivando toda a Igreja a escutar o Espírito no Povo de Deus, promovendo a corresponsabilidade de leigos, religiosos, presbíteros e bispos.
- Luta contra os abusos: Enfrentou com coragem os escândalos de abuso sexual, criando estruturas de responsabilização e amparo às vítimas.
- Acolhimento e inclusão: Reiterou incansavelmente que “a Igreja é um hospital de campanha” e que “todos têm um lugar”, mesmo os feridos, excluídos ou em situação de fragilidade.
Viagens e presença profética no mundo
Francisco realizou 41 viagens apostólicas internacionais, passando por mais de 50 países. Visitou lugares periféricos e simbólicos, como:
- Lampedusa (2013): sua primeira viagem fora de Roma, em solidariedade aos migrantes.
- Iraque (2021): primeiro Papa a visitar o país, promovendo diálogo inter-religioso.
- Sudão do Sul, Myanmar, Cuba, Congo, e Mongólia: mostrando o rosto universal da Igreja.
Cada viagem foi um ato de misericórdia, presença e reconciliação.
Francisco, o papa do amor social e da espiritualidade concreta
Seus gestos ficaram marcados na memória coletiva: lavar os pés de presidiários e refugiados na Quinta-feira Santa, abraçar pessoas desfiguradas por doenças, pedir perdão em nome da Igreja, rir com crianças, fazer silêncio diante de multidões e chorar com os que choram.
Sua espiritualidade era profundamente cristocêntrica: adorava em silêncio, confiava em São José e invocava continuamente a Virgem Maria, a quem consagrou o mundo em vários momentos difíceis.
Seu legado
- Igreja em saída: Mais pastoral, mais misericordiosa, mais aberta aos desafios contemporâneos.
- Pobreza evangélica: A centralidade dos pequenos como lugar privilegiado da manifestação de Deus.
- Ecologia integral: Ligando fé, cuidado ambiental e justiça social.
- Sinodalidade: Uma nova forma de viver a comunhão e a corresponsabilidade eclesial.
- Ousadia evangélica: Não teve medo de tocar nas feridas do mundo e da Igreja, sempre em nome da fidelidade ao Evangelho.
Fiel até o fim
O Papa Francisco entregou sua vida até o fim como servo do Evangelho, como um apóstolo contemporâneo. Seu coração cansado encontrou descanso, mas suas palavras e gestos continuam ecoando nos desertos do mundo. Como Cristo, a quem seguiu de perto, não foi um governante à maneira dos homens, mas um pastor segundo o coração de Deus (cf. Ez 34).
Hoje, a Igreja o chora com esperança e o agradece com amor. Ele foi, como Pedro, uma rocha onde soprou o vento do Espírito. E agora, com os santos e santas de todos os tempos, intercede por nós junto ao Ressuscitado que sempre anunciou.
Oração:
Senhor ressuscitado,
Tu que chamaste Francisco do fim do mundo para confirmar seus irmãos na fé,
acolhe hoje esse teu servo fiel nos braços da tua eterna alegria.
Que o seu testemunho, marcado por lágrimas e sorrisos, silêncio e profecia,
continue a ecoar em nossos corações como um chamado à conversão.
Tu sabes que caminhamos entre os que semeiam mentira, como os guardas do sepulcro,
mas também como as mulheres do Evangelho, queremos correr, cheios de temor e alegria,
para anunciar que Tu estás vivo e que a Tua misericórdia é mais forte do que a morte.
Alegra o coração da tua Igreja, consola os pobres com tua presença,
e dá-nos, Senhor, a coragem de viver a fé que o Papa Francisco viveu:
com esperança, com liberdade, com amor até o fim.
Amém.
Compromisso espiritual
Hoje, serei um sinal de ressurreição como foi o Papa Francisco:
abraçarei o outro com misericórdia, anunciarei com humildade,
e andarei com coragem mesmo quando o mundo conspirar o silêncio.
Porque Ele vive, e nós somos Suas testemunhas.
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