Sexta-Feira da Paixão do Senhor – “Nas Suas Chagas Fomos Curados”

 


Introdução


Nesta Sexta-feira Santa, silenciamos o coração e contemplamos o mistério mais profundo da fé cristã: o sofrimento redentor de Cristo. A liturgia nos conduz pelo cântico do Servo Sofredor (Isaías 52–53), pela carta aos Hebreus, onde Jesus é revelado como Sumo Sacerdote compassivo, e pelo evangelho de João, que nos mostra o Cristo vitorioso na cruz. À luz da Tradição da Igreja — com a Patrística, a Escolástica, Raniero Cantalamessa e Garrigou-Lagrange — entramos na profundidade desse dia santo, não apenas com os olhos emocionados, mas com a alma disposta a ser transformada pela obediência do Cordeiro.



O Servo Humilhado: A Redenção pela Dor

(Isaías 52,13–53,12)


Santo Agostinho: Em suas Confissões e Sermões,  reconhece que o mistério da cruz não é loucura, mas sabedoria velada: “Ele nos amou quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,8). O Servo de Javé é Cristo, que se deixou esmagar por amor. O rosto desfigurado (Is 53,3) não esconde a glória, mas a revela: é no aniquilamento voluntário que brilha o amor que salva.


"Na cruz, Cristo é elevado como o Servo Sofredor de Isaías, carregando nossos pecados (Is 53,4). Ele não apenas sofre, mas reina, pois sua morte é o sacrifício que reconcilia a humanidade com Deus. Quando diz 'Pai, em tuas mãos entrego meu espírito' (Jo 19,30; Sl 30,6), Ele nos ensina a confiar totalmente no Pai, mesmo na hora da maior provação." Santo Agostinho, em seus Sermões sobre a Paixão (Sermo 218)


Agostinho vê a Paixão como o ápice do amor divino, chamando os cristãos a contemplarem a cruz com confiança e gratidão.



São João Crisóstomo

Em suas Homilias sobre João (Homilia 85), Crisóstomo comenta a realeza de Cristo em João 18–19, especialmente sua entrega serena diante de Pilatos e na cruz:


"Quando Jesus diz 'Meu Reino não é deste mundo' (Jo 18,36), Ele revela que sua vitória é espiritual, consumada na cruz. Ele é o Sumo Sacerdote descrito em Hebreus (Hb 4,14), que oferece a si mesmo como vítima perfeita. A liturgia da Sexta-Feira Santa nos convida a adorar a cruz, pois nela vemos o amor que vence a morte."


Crisóstomo enfatiza a liturgia como um convite à adoração do sacrifício redentor, destacando a dignidade sacerdotal de Cristo.



Tomás de Aquino: Em sua Suma Teológica (III, q. 48), afirma que o sofrimento de Cristo foi voluntário e meritório. A obediência do Servo até a morte (cf. Fl 2,8) satisfez, em perfeita justiça e amor, pelos pecados de toda a humanidade. Cristo ofereceu a dor como sacrifício, e sua cruz tornou-se altar e trono.


Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica (III, q. 46, a. 6), reflete sobre a Paixão como o meio perfeito de salvação, conectando-se a Isaías 53 e João 19:


"O Servo Sofredor de Isaías, que 'não tinha beleza nem formosura' (Is 53,2), é Cristo, que, pela cruz, se torna a fonte de nossa redenção. Sua obediência até a morte (Hb 5,8) é o sacrifício que satisfaz a justiça divina e restaura a ordem perdida pelo pecado. Na Sexta-Feira Santa, a Igreja venera a cruz como o altar onde Cristo, Sumo Sacerdote, oferece a humanidade ao Pai."


Aquino interpreta a liturgia como uma celebração da justiça e da misericórdia divinas, centradas no sacrifício de Cristo.


São Bernardo de Claraval

Em seu Sermão sobre a Paixão (Sermo 43), medita sobre o sofrimento de Cristo descrito em Isaías 53 e João 19:


"Quem pode contemplar o Servo traspassado (Is 53,5) sem se comover? Na cruz, Jesus nos abraça com seus braços abertos, e sua última palavra, 'Está consumado' (Jo 19,30), é o grito de vitória que sela nossa redenção. A Sexta-Feira Santa é o dia de silenciar o coração para ouvir o amor que fala na cruz."

Bernardo destaca a liturgia como um momento de contemplação silenciosa, onde o coração se une ao sacrifício amoroso de Cristo.


Raniero Cantalamessa: “A cruz é a cadeira do Mestre”, diz Raniero. O Servo ferido é o ícone do amor que não desiste. Ao ver o rosto desfigurado de Cristo, contemplamos nossa própria miséria abraçada e redimida. “Não são os pregos que o mantiveram na cruz, mas o amor.”


Em suas pregações quaresmais, especialmente em O Mistério da Páscoa, reflete sobre a liturgia da Sexta-Feira Santa e a Paixão de João 18–19:


"A cruz, que celebramos na Sexta-Feira Santa, é o lugar onde o Espírito de Cristo (Is 52,13) se revela plenamente. Quando Jesus entrega seu espírito (Jo 19,30), Ele derrama o Espírito Santo sobre a Igreja, unindo-nos ao Pai. A liturgia nos chama a estar com Maria ao pé da cruz, contemplando o amor que transforma nossa dor em esperança."


Cantalamessa conecta a liturgia ao chamado do Espírito Santo, que nos convida a participar da redenção através da contemplação e da entrega.



Reginald Garrigou-Lagrange: O sofrimento do Servo pertence à via purgativa e iluminativa da alma. Nas chagas de Cristo, a alma purifica seus apegos e se ilumina no mistério do amor oblativo. A cruz, sendo o ápice da humildade, torna-se o portal da união mística.


Em As Três Idades da Vida Interior, aborda a Paixão como o ápice da união mística, com base em Hebreus 5,7-9 e João 19:


"Na Sexta-Feira Santa, contemplamos Cristo, o Servo Sofredor (Is 53), que, pela cruz, nos conduz da via purgativa à via unitiva. Sua entrega total, 'Pai, em tuas mãos entrego meu espírito' (Jo 19,30), é o modelo da alma que se abandona a Deus. A liturgia nos convida a morrer para o pecado e viver para a glória da ressurreição."


Garrigou-Lagrange vê a liturgia como um momento de purificação e união, onde a alma se conforma ao sacrifício de Cristo.



Medite:
Jesus, por mim esmagado, por mim ferido. Meu pecado é o peso sobre Teus ombros. E ainda assim, me olhas com amor. Cura-me, Senhor, nas Tuas chagas. Ensina-me a não fugir da cruz, mas a abraçá-la contigo, em confiança.




O Sumo Sacerdote que Se Compadece


(Hebreus 4,14–16; 5,7–9)

São Leão Magno: Em seu famoso Sermão sobre a Paixão, São Leão afirma: “A fraqueza de Cristo é a nossa força.” Jesus, nosso Sumo Sacerdote, assumiu a nossa carne para santificá-la por dentro, não a partir da glória, mas do sofrimento. Ele chorou, suou sangue e gritou a Deus, como qualquer homem — mas sem jamais pecar.


Anselmo de Cantuária: Em Cur Deus Homo, Anselmo revela que somente Deus poderia reparar a ofensa infinita causada pelo pecado, mas somente um homem deveria oferecê-la. Em Cristo, Deus e homem, a obediência se tornou ponte de reconciliação.


Cantalamessa: Em seu Pregando o Kerygma, Cantalamessa insiste: Cristo conhece minhas lágrimas, porque chorou antes de mim. Ele não é um sacerdote distante, mas um irmão que geme conosco. Seu sacerdócio é compassivo, porque nasceu da dor.


Garrigou-Lagrange: O sacerdócio de Cristo é a porta da vida interior. Ele nos convida à via iluminativa, na qual o sofrimento já não é ruína, mas escola. A obediência torna-se livre, amorosa, redentora.


Medite:
Senhor, não temo me aproximar de Ti. Tu sabes o que é chorar, perder, sofrer. Tu me conheces por dentro. Dá-me a coragem de Te seguir pela via da obediência, mesmo quando o caminho é escuro. Ensina-me a ser sacerdote da minha dor, oferecendo-a a Ti.




*“Tudo Está Consumado!” – A Cruz Como Vitória*


*(João 18,1–19,42)*

Orígenes: Em sua leitura alegórica, Orígenes vê no “jardim” onde começa a Paixão (Jo 18,1) a reversão do Éden. Onde Adão caiu, Cristo venceu. A cruz é árvore da vida, onde o Novo Adão redime o antigo. “Tudo está consumado” (Jo 19,30) significa: tudo foi reparado, tudo restaurado.


Tomás de Aquino: Em Comentário ao Evangelho de João, Tomás declara que a cruz não é derrota, mas triunfo. “Consumado” é palavra de rei, não de condenado. O Redentor entregou o Espírito, não porque foi vencido, mas porque venceu.


Cantalamessa: “O trono de Cristo é a cruz, e a sua coroa é de espinhos.” Jesus não foi surpreendido pela morte; Ele a acolheu como ato final de obediência e amor. A entrega do Espírito não é apenas morte física, mas início da nova criação.


Garrigou-Lagrange: Aqui culmina a via unitiva: o Verbo, unido ao Pai, entrega-Se totalmente. O fiel, ao unir-se à cruz, participa desta união, onde a dor se transfigura em amor puro. A morte já não é fim, mas nascimento.


Medite:
Jesus, Tu consumaste tudo. Nada ficou por fazer. Tu me amaste até o fim. Ensina-me a entregar tudo ao Pai — meus sonhos, minhas feridas, meus pecados, minha vida. Que minha última palavra, como a Tua, seja de confiança absoluta: 
"Em Tuas mãos entrego o meu espírito."



Conclusão: A Cruz é Escola, Altar e Vitoria


Neste dia em que tudo silencia, não celebramos o fracasso de um justo, mas o triunfo do Amor. A Paixão do Senhor é o livro onde lemos nossa história redimida, nosso pecado perdoado, nossa esperança restaurada. A tradição da Igreja nos convida a entrar na cruz com inteligência espiritual: a cruz é escola de obediência (como nos ensina a Escolástica), é sinal de misericórdia (como diz a Patrística), é fogo do Espírito (como proclama Cantalamessa), é caminho de união mística (como revela Garrigou-Lagrange).



*Oração:*
Ó Cristo, Servo Sofredor, Sacerdote Compassivo, Rei Crucificado, ensina-me a amar como Tu amas. Cura-me nas Tuas chagas, levanta-me com a Tua cruz, consome em mim tudo o que não é amor. Que, na Tua Paixão, eu descubra minha salvação. Amém.

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