O Justo na Adversidade: Conhecendo a Si Mesmo e a Misericórdia de Deus
Vivemos uma era marcada por avanços extraordinários: inteligência artificial, diagnósticos médicos em segundos, comunicação instantânea com qualquer canto do planeta. Mas, apesar de toda essa modernidade, o ser humano ainda tropeça nos abismos de sempre: insegurança, ansiedade, solidão e um profundo sentido de vazio.
Nossa cultura, obscurecida pela lógica materialista e tecnicista, relativizou a verdade, ridicularizou a fé e transformou o sucesso num altar. O bem e o mal foram nivelados por baixo, enquanto os valores eternos passaram a ser negociados por conveniência. Quem tenta viver segundo a verdade, guiado pela fé, acaba incompreendido, rejeitado ou rotulado como ultrapassado.
São tempos em que a sociedade contemporânea parece girar em torno de uma lógica obscurecida, uma "lógica dos ímpios" que a Sagrada Escritura já denunciava (Sb 2,1.12-22). É uma cultura materialista que exalta o ter acima do ser, relativista ao ponto de dissolver a verdade em opiniões passageiras, cética diante de qualquer transcendência e tecnicista, reduzindo o homem a um conjunto de dados e algoritmos. Nessa realidade, a luz da fé é frequentemente rejeitada, vista como um incômodo ou uma ameaça. Por outro lado, a Igreja, iluminada pela Escritura, pela Tradição e pelo Magistério, apresenta a figura do justo — incompreendido, perseguido e rejeitado, mas que, consciente de sua vocação, transforma os desafios e adversidades em degraus para o autoconhecimento e para a descoberta da misericórdia divina.
Mas… e se essa oposição for justamente o sinal de que estamos no caminho certo?
Do interior da alma de uma jovem,
representado por uma rachadura,
começa a florescer uma flor
— sinal da misericórdia de Deus que brota mesmo nas feridas mais profundas
O Salmo 1 descreve essa tensão entre o justo e o ímpio de forma poderosa:
“Feliz o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios… antes, tem seu prazer na lei do Senhor... será como árvore plantada junto a ribeiros de águas.” (Sl 1, 1–3)
O justo não é um herói sem falhas, mas alguém que se coloca diante da própria fragilidade com honestidade. Ele não se ilude com promessas de estabilidade mundana — sua estabilidade vem do alto. Vem de Deus. Vem do encontro com a verdade que liberta.
#### A Cegueira dos Ímpios e a Luz do Justo
O Livro da Sabedoria nos confronta com uma verdade incômoda: “Enganam-se, pois a malícia os torna cegos, não conhecem os segredos de Deus…” (Sb 2,21-22). Os ímpios, movidos por paixões desordenadas e apegos terrenos, sentem-se ameaçados pelo justo, cuja vida reta é um espelho que reflete suas próprias trevas. Santa Teresa d’Ávila, no texto de *A Satisfação de Todo Desejo*, descreve como o pecado mortal obscurece a alma, comparando-a a um castelo de cristal que, outrora iluminado pela presença de Deus, torna-se negro e deformado. O justo, ao contrário, busca viver na luz, mesmo que isso signifique atrair a hostilidade do mundo.
Um castelo de cristal envolto em trevas,
com uma luz suave emanando de seu centro,
simbolizando a alma em luta entre o pecado e a graça divina.
Jesus, o Justo por excelência, é o modelo perfeito dessa tensão. No Evangelho de João (Jo 7,1-2.10.25-30), Ele caminha em segredo, consciente de que “sua hora” ainda não chegou, mas firme na missão que o Pai lhe confiou. Ele não é apenas o Nazareno geograficamente identificado, mas o Filho que conhece o Pai e vem d’Ele. Essa intimidade com Deus é o que o mundo não suporta, pois expõe sua cegueira espiritual.
A crise como caminho: conhecer-se para conhecer a misericórdia
As circunstâncias podem mostrar um momento de aparente ruína: crise profissional, abalos emocionais, perdas, solidão. A tentação é forte: desistir, afundar, esconder-se. Mas é justamente nesse momento que Deus sussurra:
“Você já se viu tentando manter de pé um edifício ruído por fora e por dentro?”
Essa pergunta que Deus faz à alma é, na verdade, um convite: “Permita que Eu desconstrua o que é frágil, para reconstruir em ti o que é eterno.”
O justo, então, descobre que os desertos da vida não são punições, mas oportunidades para enxergar a própria alma, com suas rachaduras e suas possibilidades de redenção. Como escreve o autor do texto:
“A crise me ensinava a recomeçar pela raiz. A buscar a fonte da minha dignidade. A ter sede do Deus que sacia e salva.”
#### O Silêncio do Justo e a Proximidade de
Deus
Diante da perseguição, o justo não responde com violência ou desespero, mas com confiança silenciosa. O Salmo 33(34) nos assegura: “Do coração atribulado está perto o Senhor.” Essa proximidade divina é o que sustenta o justo em meio às provações. São Bernardo de Claraval, refletindo sobre o autoconhecimento, alerta que sem ele não há temor de Deus nem humildade, e sem humildade, a alma permanece cega para sua própria miséria e para a grandeza de Deus (pág. 5 do documento). Já Santa Catarina de Sena ensina que o autoconhecimento deve ser temperado pela lembrança do sangue de Cristo e da misericórdia divina, para que não caiamos no desespero que o diabo tenta semear.
Uma jovem, serena, segurando um Terço, envolta por uma luz suave,
enquanto sombras ameaçadoras se aproximam ao fundo.
O mistério da vida cristã é profundamente pascal: é necessário morrer para viver, descer para subir, perder para encontrar. A cruz que pesa é a mesma que santifica. O justo entende que o sofrimento, quando vivido com fé, não é fim, mas caminho de transformação.
Como nos ensina a espiritualidade cristã, Deus não elimina a dor, mas entra nela conosco. Ele caminha ao nosso lado no vale da sombra da morte e nos sustenta com sua misericórdia.
O justo, portanto, usa as adversidades como um espelho: ao contemplar sua pequenez, descobre a grandiosidade de Deus; ao reconhecer sua imundície, experimenta a pureza divina. Esse caminho de humildade e confiança é o que o leva a progredir na vida espiritual, como São João Paulo II nos recorda: a oração pode se tornar um “genuíno diálogo de amor” que nos faz repousar no coração do Pai.
#### Um Chamado à Santidade em Meio ao Caos
A sociedade contemporânea, com sua lógica ímpia, tenta sufocar esse chamado à santidade. Mas a Igreja nos lembra que o progresso espiritual não é apenas possível, mas necessário. “Ninguém pode ver a Deus sem ser santo” (Hb 12,14), e essa santidade começa com o temor do Senhor e culmina no amor perfeito. Jesus, ao enfrentar a rejeição, nos mostra que a cruz não é o fim, mas o caminho para a glória. Segui-lo significa abraçar nossa própria cruz, mesmo que isso custe incompreensões ou perseguições.
O autoconhecimento nunca terá resultados totalmente positivos se não for vivenciado conjuntamente com o conhecimento de Deus. Perceber a fealdade e o egoísmo da alma maculada pelo pecado e os efeitos do pecado pode gerar escrupulosidade e desespero, se, ao mesmo tempo, não se percebe a misericórdia e a bondade de Deus. São Bernardo de Claraval descreve bem esse desespero que pode emergir de um conhecimento parcial do eu, ciente apenas de áreas de pecado, separado do conhecimento de Deus.
Se ele não sabe quão bom é Deus, (Sl 73, 1), quão generoso e amável (Sl 86, 5), quão disposto a perdoar (Is 55,7), sua razão voltada para os sentidos não haverá de argumentar dizendo: "Que estás fazendo? Queres perder esta vida e a próxima? Teus pecados são demasiado graves e numerosos; nada que faças, ainda que arranques a pele de sua carne, pode repará-los. Tua compreensão é delicada, tens uma vida de confortos, os hábitos de uma vida inteira não são fáceis de vencer.
Essa dolorosa consciência do pecado facilmente tenta a pessoa ao desespero, ao desânimo e à depressão profunda. Acreditando que a reforma interior é impossível, ela pode render-se irremediavelmente ao mundo. São Bernardo entende que esse desespero é o pior de todos os males e insiste que a misericórdia de Deus está sempre ao alcance do pecador que recorre a Ele.
“Em minha opinião, todos os que se recusam a recorrer a Deus são aqueles que carecem do conhecimento de Deus”.
Mas, por que o autoconhecimento e o conhecimento de Deus são tão importantes? Porque eles geram humildade, que como ensinam São João da Cruz e muitos outros santos, é essencial para o progresso na vida espiritual.
Enquanto estamos neste mundo, nada é mais importante para nós que a humildade. Em minha opinião, jamais teremos o pleno conhecimento de nós mesmos se não nos esforçarmos por conhecer a Deus. Ao contemplar sua grandiosidade, entraremos em contato com a nossa própria pequenez. Ao olhar para sua pureza, veremos nossa própria imundice. Ao meditar sobre sua humildade, veremos com o quão longe estamos de sermos humildes.
A vida de Deus que nasce em nós pela fé e pelo batismo precisa crescer e ser aperfeiçoada para chegarmos ao nosso destino celeste. Em outras palavras, a semente plantada em nossa alma tende a crescer, desenvolver-se e amadurecer. A menção frequente dos santos à “perfeição” tem raízes profundas nos ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, e precisamos estar plenamente convencidos disso se quisermos perseverar até o final da jornada.
Como já vimos, o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, ou primeiro estágio, conforme uma tradução, mas a perfeição do amor é seu fim. A santidade começa no temor do Senhor e termina em um amor sem medo (1 João 4, 11-12, 17-18; Filipenses 1, 6, 9-11; 1 Tessalonicenses 5, 23; 1 Tessalonicenses 3, 12-13).
Mais uma vez, o chamado à santidade, ao progresso espiritual, ao crescimento, à perfeição, tem suas raízes na visão de mundo bíblica. O que começa nesta vida termina diante do tribunal de Cristo, na vida futura, em uma eternidade de amor ou pesar. Para usar a linguagem bíblica, somos primeiros justificados pela fé e pelo batismo. Em seguida, somos santificados pela ação do Espírito Santo durante uma vida inteira de crescimento. E, por fim, somos glorificados na bendita visão do céu. Saber a que somos chamados é importante, mas desejá-lo de todo o coração também o é.
Hoje, somos convidados a olhar para dentro de nós mesmos, como Santa Teresa d’Ávila recomenda: “É tolice pensar que adentraremos no céu sem adentrarmos em nós mesmos”. Esse autoconhecimento, unido à confiança na misericórdia de Deus, nos dá a coragem de sermos justos em um mundo que prefere as trevas.
#### Compromisso Pessoal
Diante desse convite, faço um compromisso: escolho caminhar com Jesus, o Justo, mesmo que isso signifique ser mal interpretado ou rejeitado. Que as perseguições sejam para mim um selo de autenticidade, um sinal de que pertenço a Cristo. E que, nos momentos de tribulação, eu me lembre da frase que guardo no coração: “Do coração atribulado está perto o Senhor” (Sl 33/34).
Que possamos, como Igreja, ser luz em meio às trevas, vivendo com integridade e confiança, certos de que nossa hora chegará no tempo de Deus.
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