Quaresma - Devocional – Terça-feira Santa: "Serei Eu?"

 



Introdução



Neste ponto da Semana Santa, a liturgia nos conduz ao mistério da entrega: entrega de Jesus ao Pai, entrega do Servo Sofredor à missão, entrega da alma ao juízo da verdade. As leituras de Isaías 50, Salmo 68 e Mateus 26 nos colocam dentro da cena dramática do Cenáculo, onde o amor é traído, mas também onde a esperança se renova no mistério pascal. O Servo de Javé revela-nos a confiança diante da dor; o salmista clama por misericórdia; e os discípulos perguntam com temor: "Serei eu?" Esta é também a nossa pergunta, e este estudo devocional nos convida a escutar, discernir e responder.



*Contexto Bíblico: Isaías 50,4-9; Salmo 68(69); Mateus 26,14-25*


*Isaías 50* apresenta o terceiro cântico do Servo, destacando a docilidade em escutar e a firmeza em permanecer fiel diante das provações. O Servo, figura profética de Cristo, aprende a ser discípulo e se oferece como testemunha. Ele confia plenamente no auxílio do Senhor, certo de que a justiça de Deus o vindicará.


*O Salmo 68* é o grito do justo perseguido. Clama por socorro, mas também reconhece o amor imenso de Deus, suplicando por uma resposta misericordiosa "neste tempo favorável".


*Mateus 26* narra a traição de Judas: a entrega de Jesus por trinta moedas. O Mestre anuncia, os discípulos se inquietam, e Judas se revela. A tensão escatológica se entrelaça com o drama humano da traição e a liberdade do amor.



*O Servo Sofredor e a Fidelidade no Amor*


*Santo Agostinho*, em sua leitura dos cânticos do Servo (Enarrationes in Psalmos), afirma que “Cristo fala em Isaías como Cabeça e como Corpo”. Assim, o Servo é Cristo e também a Igreja. Ele aprendeu a escutar porque é Palavra; sofreu sem resistência porque é Cordeiro. Sua confiança no Pai revela o núcleo da vida espiritual: o abandono total à vontade divina.


*São João Crisóstomo*, ao comentar sobre Judas, declarou: 


“Quando Jesus disse 'um de vós me entregará', cada discípulo perguntou 'Serei eu, Senhor?', mostrando uma humildade que teme a própria fraqueza. Mas Judas, ao perguntar 'Serei eu, Mestre?', revela sua hipocrisia, pois já havia feito o acordo com os sacerdotes. Jesus, ao responder 'Tu o disseste', não o condena diretamente, mas lhe dá uma última chance de arrependimento, mostrando sua misericórdia até o fim."


Crisóstomo destaca o contraste entre a humildade dos discípulos e a hipocrisia de Judas, sublinhando a paciência de Jesus em oferecer misericórdia mesmo ao traidor. Ele enfatiza a liberdade e a responsabilidade pessoal. Judas não foi predestinado à traição; ele a escolheu por amor ao dinheiro. Para Crisóstomo, a verdadeira tragédia não é cair, mas recusar a conversão: “Judas poderia ter chorado como Pedro.”


*Ponto Devocional*: Escuto como discípulo? Vivo como servo fiel, ou cedo ao murmúrio da traição?




*A Vontade Perfeita e o Mistério da Liberdade*


*Santo Tomás de Aquino*, ao comentar sobre Judas, declarou: 


“Judas, movido pela avareza, vendeu o Mestre por trinta moedas de prata, um preço vil que simboliza o quanto o pecado desvaloriza o que é mais precioso. Sua traição é um pecado contra a caridade, pois rompeu o vínculo de amor com Cristo, que o havia escolhido como apóstolo. Isso nos ensina que a avareza é a raiz de muitos males, como diz o Apóstolo (1Tm 6:10)."


Aquino analisa a traição de Judas como um ato de desordem moral, chamando os cristãos a examinarem suas próprias motivações e a priorizarem o amor a Cristo acima de tudo.


*Santo Anselmo*, em Cur Deus Homo, ressalta que o sofrimento do justo não é derrota, mas expiação e glória. Cristo, como Servo, oferece obediência onde o homem pecador ofereceu desobediência. A liberdade de Jesus em entregar-se contrasta com a corrupção da liberdade de Judas.


*São Bernardo de Claraval*, em seu Sermão sobre a Paixão do Senhor, reflete sobre o anúncio de Jesus durante a ceia (Mt 26:21-25):


"Que tristeza deve ter sentido o coração de Cristo ao dizer 'um de vós me entregará'! Ele, que conhecia os corações, viu a dureza de Judas, mas não o expulsou da ceia. Isso nos mostra que o amor de Jesus não se retrai diante da ingratidão. Judas comeu do mesmo prato que o Senhor, mas seu coração estava longe. Somos chamados a nos aproximar de Cristo com um coração puro, para não comermos nossa própria condenação."


Bernardo sublinha a compaixão de Jesus e o perigo de participar da Eucaristia sem verdadeira conversão, usando Judas como exemplo.


*Ponto Devocional*: Minha liberdade é entrega ou fuga? Busco a glória pela cruz ou a segurança pela traição?



*A Palavra que se Deixa Ferir*


Em suas meditações sobre a Semana Santa, *Cantalamessa* afirmou: 


"Judas, ao trair Jesus por trinta moedas, nos confronta com a realidade do pecado que escolhe o material em vez do espiritual. Mas a resposta de Jesus, 'Tu o disseste', é um convite à conversão, mesmo no último momento. A tragédia de Judas não foi a traição em si, mas sua incapacidade de buscar o perdão, como Pedro fez após sua negação. Isso nos ensina que a misericórdia de Deus está sempre disponível, se a aceitarmos."


Cantalamessa destaca a misericórdia de Jesus e o contraste entre Judas e Pedro, chamando-nos a confiar no perdão divino. Ele vê o Servo como imagem do Verbo que “aprendeu a escutar” para depois “oferecer as costas aos que o ferem”. Para ele, Isaías 50 é o ícone de uma espiritualidade pascal que não foge da dor, mas a integra como via de comunhão. Judas é símbolo do coração dividido, que manipula o amor para usá-lo.


A pergunta dos discípulos "Serei eu?" é, para Cantalamessa, a chave da autenticidade espiritual: o verdadeiro discípulo se examina, se questiona, se humilha. O traidor é aquele que não pergunta mais.


*Ponto Devocional*: Ainda pergunto a Jesus quem sou? Permito que Ele revele minha verdade interior?



*A Purificação da Intenção*


No caminho das três vias (As Três Idades da Vida Interior), *Garrigou-Lagrange* interpreta o Servo de Isaías como aquele que, tendo passado pela via purgativa sem revolta, entra na via iluminativa da confiança pura, e pela obediência abraça a via unitiva da cruz. Ele não busca escapar da injustiça, mas vê nela o caminho para a união com o Pai.


Judas, por contraste, é exemplo da alma que recusa o esvaziamento interior e permanece nas trevas da afeição desordenada. A obediência do Servo é o remédio contra a auto-afirmação do ego.


*Ponto Devocional*: Estou disposto a viver a obediência até o fim? Minha confiança no Pai é maior que meu medo do sofrimento?



Síntese dos Pensamentos


  • Traição de Judas: Autores como Agostinho, Crisóstomo, Aquino, Bernardo, Cantalamessa e Bonhoeffer veem a traição de Judas (Mt 26:14-16) como um exemplo do pecado que rejeita a graça, movido pela avareza e pela hipocrisia. Eles destacam a misericórdia de Jesus, que oferece a Judas oportunidades de conversão até o fim, e alertam os cristãos sobre os perigos de um coração dividido.
  • Anúncio na Ceia: A angústia dos discípulos e o anúncio de Jesus (Mt 26:21-25) são interpretados como um momento de revelação do amor de Cristo, que não rejeita Judas, mas o confronta com a verdade. Os autores sublinham a humildade dos discípulos, que temem sua própria fraqueza, e a paciência de Jesus, que ensina a importância de uma comunhão autêntica com Ele.



*Síntese Teológica e Espiritual*

As leituras de hoje nos oferecem uma tríplice revelação:

  1. A Confiança do Servo (Isaías 50): Fé não é ausência de dor, mas perseverança na escuta e na obediência.
  2. A Luta Interior (Mateus 26): O coração humano pode acolher ou trair o amor. O exame de consciência é essencial.
  3. A Misericórdia na Dor (Salmo 68): Mesmo perseguido, o justo espera em Deus, que responde “neste tempo favorável”.


*Aplicação Devocional*

*Perguntas para refletir:*

  • Tenho escutado a Palavra como verdadeiro discípulo?
  • Minha entrega a Cristo é total ou interesseira?
  • Permito que o Espírito revele as zonas de sombra do meu coração?


*Compromisso espiritual:*
Hoje, escolho abrir meu coração à verdade de Cristo, sem disfarces nem resistências. Pergunto com sinceridade: 
"Serei eu?" E acolho a resposta que Ele me der, sabendo que o amor corrige, mas também perdoa.


*Oração:*

“Senhor Jesus, Servo fiel, que aprendeste a escutar na dor e a obedecer no silêncio, ensina-me a ser teu discípulo. Revela-me as sombras do meu coração e purifica minhas intenções. Que eu te receba em minha casa com humildade, e não te entregue por vaidade. Senta-te comigo à mesa, e celebra comigo a tua Páscoa. Amém.”


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